Resolução política

IV Assembleia da Esquerda Alternativa 

 

Foto de Paulete Matos

 

 

 

1- Maastricht em cheque

 

Há cerca de vinte cinco anos, viu a luz o Tratado de Maastricht. Este institucionalizou a União Europeia, as regras orçamentais dos Estados (hoje, tratado orçamental), preparou a moeda única e o centralismo de um diretório (reconhecido no Tratado da União Europeia/Lisboa). Segundo a doutrina da época, a união económica e monetária precederia a união política, qualquer coisa como os Estados Unidos da Europa.


É sabido que a crise do capitalismo de 2008 fustigou fortemente a Europa concebida em Maastricht. As políticas dos governos levaram, por um lado, a dívida pública a níveis astronómicos para salvar a banca e os mercados financeiros, sujeitando os Estados à especulação dos juros. Por outro lado, as consequências não se fizeram esperar: anos de recessão e estagnação. O desemprego e a pobreza cresceram bastante, e ainda mais nos países sob administração direta da troika, onde a quebra no investimento foi brutal.

Esta crise de 2008, com características globais, e ainda não encerrada nos dias de hoje, teve origem na economia de casino e na concentração desmedida de capital. Os aspetos extremos do colapso financeiro provêm da desregulação dos mercados, em especial dos mercados financeiros. Como a propaganda não o deixava esquecer, a desregulação era a bandeira da agenda neoliberal que triunfara por toda a parte. Todas as praças financeiras do mundo sofreram crises gémeas de Wall Street, com maior ou menor profundidade. Ao mesmo tempo, a agenda neoliberal tinha-se encarregado de reduzir significativamente o Estado social, a oferta pública de bem-estar, bem como promover a liberalização das condições de emprego, baixando salários, precarizando vínculos contratuais da mão-de-obra.

Ao insucesso económico na União Europeia juntava-se assim o retrocesso social. Esta conjunção de fatores explica o descontentamento popular, em setores muito largos, face ao proclamado projeto europeu. E leva a uma brusca deslocação de forças à direita no espetro político. A ascensão da extrema-direita, processo que já vinha de trás, acelerou-se claramente com a crise de 2008. A xenofobia veio acompanhada de um trampolim nacionalista muito forte, que se confunde geralmente com a exigência de saída da União Europeia.

A classe dominante na cena europeia fez o povo pagar a crise financeira. E, de seguida, sob o comando da Alemanha, adotou uma agenda conservadora recuperando a regulação dos mercados financeiros e impondo políticas económicas de austeridade, esvaziando direitos sociais, sob a ideologia avassaladora de que ‘ninguém pode viver acima das suas possibilidades’. A punição dos pobres, dos imigrantes, dos subsidiados, é o guião para atrair a classe média. Esta ética da exclusão passa a ser a mensagem que empurra os partidos conservadores para as proximidades da ultradireita. Os conservadores passam também a manipular, a par da extrema-direita, os sentimentos nacionalistas, reservatório eleitoral óbvio. É fácil dizê-lo de Viktor Orbán, na Hungria, mas pudemos reconhecê-lo tanto em Merkel como em Cameron. O nacionalismo, com o qual se ganham eleições é, contudo, corrosivo para o incipiente federalismo europeu e um jogo perigoso. Daí ser já um lugar-comum sublinhar que há sinais de fragmentação na União Europeia.

Vivemos o anti-Maastricht, em termos de expetativas de união política e com a união monetária em cuidados intensivos. Podem vir a ocasionar-se, no âmbito da União Europeia, reconfigurações de fronteiras e de instituições. A prudência da observação impõe encarar um período prolongado de definição interna e de acirramento de interesses dos principais atores. Devemos ponderar a continuidade conflitiva da União Europeia, não descartando alterações nos tratados tendentes ao aprofundamento da disciplina política, agravando o distanciamento da superestrutura em relação aos direitos dos cidadãos.

Deve também levar-se em conta que o fator externo que fez emergir a União Europeia, como concorrente da economia global, é por hora a sua mais importante base de sustentação. Os governos europeus olham com preocupação crescente para a chegada da China ao topo da economia mundial e a partilha sino-americana do poder global do imperialismo, deixando a Europa num papel subalterno. Ao mesmo tempo, os governos europeus estão alarmados com o ressurgimento militar da Rússia. Os mesmos Governos europeus que enfrentam diretamente várias guerras no espaço africano e do médio oriente, guerras que provocaram, ou às quais se associaram. Os mesmos governos europeus que fazem reféns ondas de refugiados de guerra, e sofrem a queixa dos povos pelas ondas de terror do Daesh.

A instabilidade internacional e as “exigências do mercado” obrigam a acordos difíceis no âmbito europeu, sob o signo de que a Europa marca passo. A eurocoisa é o nome do pântano mas é um inimigo poderoso. A eurocoisa é o poder acessório do diretório das potências, onde a democracia se apaga.

2. Os trabalhos de Hércules

O caso grego do governo do Syriza impõe a reflexão fundamental.

Desde logo, por ter sido a única vez que um partido da esquerda radical no pós Segunda Guerra Mundial, na Europa, ganhou eleições gerais, embora sem maioria. Um partido que levantou a bandeira da rutura com a austeridade ditada por Merkel, que quis reverter os desmandos da troika. Um partido que se bateu pela reestruturação da dívida externa e que não concedeu outra coisa que não fosse um debate entre iguais.

Esse posicionamento abriu uma crise no “Eurogrupo” que se arrastou por meses, e foi resolvida em privado pelo ministro alemão das finanças. Sob a ameaça de exclusão do euro e corte de financiamento, a Alemanha e os outros membros do “Eurogrupo” ordenaram mais um resgate ruinoso e submeteram o povo grego a um duro pacote de austeridade. Neste desfecho, note-se a grande unidade entre conservadores e socialistas, para o qual não faltou até a bênção da CES (Confederação Europeia de Sindicatos). Tudo isto apesar da maioria dos gregos ter dito em referendo que se opunha aos planos da Alemanha e da UE. Na sequência desse referendo, inexplicavelmente, Tsipras capitula. O primeiro-ministro grego aplica hoje a mesma receita que contestava. Alegou não poder fazer outra coisa para evitar a falência do Estado helénico. A insubmissão grega foi intensa, curta e rendida. Os conservadores de toda a parte realçaram a ortodoxia granítica da receita e avisaram os recalcitrantes com o “castigo grego”.

O exemplo grego traz várias lições.

Bastou um governo desalinhado para pôr sob pressão a maquineta política europeia e desmascarar a farsa democrática institucional. Bastou que um governo assumisse uma posição anti-austeritária para terminar o mito de que não haveria alternativa ao tratado orçamental. Bastou um ensaio de reestruturação da dívida externa e o comando do euro tremeu e ficou em causa.

O referendo de 5 de julho e a fortíssima demonstração da capacidade de autodeterminação do povo grego só podiam ter como consequência uma atitude firme contra Schäuble e, no caso, não ceder à chantagem e assumir uma eventual saída do euro. Essa atitude implicaria certamente muitos sacrifícios “à argentina”, perda temporária de potencial económico, mas permitiria o regresso da decisão própria do país para sair da ruína. No entanto, a capitulação não demonstrou essa impossibilidade, demonstrou apenas a orientação inconsequente de Tsipras e do seu núcleo de poder. A posterior reeleição de Tsipras não absolve a política de austeridade nem legitima a cedência. É um processo conhecido: foi-se a esperança, veio o mal-menor. Pessoaliza-se a crítica em Tsipras, não só pela sua responsabilidade de líder do Syriza e do governo, mas também pelo facto de para todas as principais decisões ter prescindido de reunir sequer o comité central do seu partido.

A conversão ao “Eurogrupo”, sob queixa, de Tsipras impediu-nos de saber se Alemanha fazia ou não bluff com a ameaça de expulsão da Grécia do sistema euro, a suspensão ou irradiação da união monetária. Há fortes indícios de que a segurança proporcionada pelo Banco Central Europeu seria insuficiente para as ondas negativas nos mercados de capitais. Uma coisa é certa, e essa ficou provada: não há no atual contexto, como muitos reclamam, saídas do euro pacíficas e negociadas como tal.

O caso Syriza trouxe à evidência que, neste quadro europeu, a tática política dos opositores à União Europeia e sua agenda conservadora e militarista depende de uma dupla relação de forças: no parlamento do seu Estado e no conselho de ministros da União. Na essência, subordina-se sempre a uma maioria social no seu país, precisa de uma direção consequente e de capacidade de alargar a insubmissão ao “modelo de Maastricht” em vários países. A direção do golpe principal é sobre o diretório europeu. O dilema é: “ou a Europa muda e fazemos o processo dessa rutura ou negociação, ou mudamos nós em conflito com a ditadura da troika”.

É a singularidade de uma dupla relação de forças que determina o rumo multilateral da luta de classes. E é a singularidade desse facto que obriga a políticas de alianças, aos vários níveis, nacional e supranacional, que podem ser heterogéneas. Jogamos na relação de forças nacional com uma proposta europeia. Batemo-nos por ela no eixo Bruxelas-Berlim. Se aquela não resultar, o recurso é uma saída nacional. Para isso, e em todas as circunstâncias, é preciso vencer as eleições para a Assembleia da República. Ou seja, um ou vários partidos anti-austeridade, querendo romper o quadro dos tratados europeus e criar um espaço europeu democrático, pacífico e social, alcançam maioria de governo. Isto é, uma maioria parlamentar que não garanta às elites a obediência ao “Eurogrupo”.

O fator europeu é aqui inescapável: a profunda integração económica e cultural, os mecanismos políticos da dependência, reforçam a centralidade de uma proposta europeia, mesmo que a União Europeia apresente sinais de fragmentação. A ideia de saída da União Europeia, pura e simplesmente, isola a esquerda popular e não lhe permite fazer a experiência política de transformar a eurocoisa com a participação de milhões de portugueses.

Os críticos de uma proposta europeia argumentam com a assincronia dos processos políticos nos vários Estados-Membros. Esse é um facto. Mas convém perceber que essa assincronia resulta de vários fatores objetivos, que têm de ser alterados. Como seja: a extrema adversidade de relação de forças em que se encontra a esquerda radical no conjunto dos países considerados; o recuo e a defensiva dos movimentos sociais de classe; a dificuldade em obter como referência uma plataforma de partidos que se distinga com nitidez dos conservadores e dos centristas tipo Partido Socialista Europeu. A assincronia na política existe desde sempre: era conhecida de todos os revolucionários quando combateram impérios com várias nacionalidades. Igualmente conhecemos a assincronia hoje quando enfrentamos um “semi-império”. E note-se: a fuga para o espaço nacional, voltando as costas à Europa, nem sequer resolve os problemas de assincronia no próprio espaço nacional. A crítica de que a não coincidência dos processos políticos inibe uma alternativa “dos de baixo” é uma desistência, não propriamente um elogio de uma sincronia que nem sequer conhecemos em Portugal, entre as várias regiões, desde há 40 anos.

O caso grego pode ter influenciado setores da esquerda europeia a oscilar entre a desmoralização e o possibilismo. A recomposição ao centro, ressuscitando “Pasoks”, pode ter a bênção dos sociais-liberais mas, tal como Tsipras, não altera nada na Europa. A esquerda radical também não ficou imune ao desastre de Atenas e carece de uma clarificação sobre os princípios do seu combate contra a União Europeia. Trazemos aqui esse esboço de contributo. Os movimentos sociais, hoje tão deficitários, necessitam dessa clareza. Sem princípios não há coragem para o embate, nem raiz para a alternativa. É bom lembrá-lo em tempos em que se enaltece a capitulação.

O euro não é a divisória desse debate estratégico. A moeda, não única mas maioritária na UE, é o braço armado do tratado orçamental. A fonte do problema do desequilíbrio das finanças públicas, e da armadilha para depreciar as economias mais fracas, está na orientação económica de Bruxelas. Alguns antecessores do Bloco de Esquerda, UDP e PSR, foram contrários à introdução do euro e das regras de Maastricht. A esquerda de que nos reclamamos hoje está portanto à vontade para defender a desvinculação do euro, se o processo da luta europeia não nos deixar outra hipótese.

O que verdadeiramente nos divide na esquerda europeia é a influência do governismo sem princípios, ou a condução de partidos a uma mera resistência institucional sem ligação ao movimento popular. Ou seja, o efeito Syriza no seu pior.

3. As vias do anti-federalismo

A análise da experiência recente do Syriza no governo helénico, com lições para todo o processo europeu, deve ser acompanhada de um explicativo sobre a opção europeísta. A evocação do momento de Maastricht é também fértil para esse fim.

Com Maastricht terminava também uma querela política das esquerdas comunistas e radicais, sobre a impossibilidade do então designado “projeto europeu”.

A polémica vinha de muito atrás, dos primeiros anos do século XX. A esquerda, de inspiração leninista, em polémica com mentores da ideia de unidade europeia, disse ser tal hipótese “impossível ou reacionária”. Dir-se-ia que a unidade europeia era impossível porque os imperialismos francês, alemão e inglês colidiriam entre si (como aconteceu em duas guerras mundiais depois disso). Dir-se-ia que a unidade europeia seria reacionária porque isso suporia uma única potência na Europa, eliminando vários rivais (como depois foi tentado pelo hitlerismo). O acerto dessas previsões era substancial. Mas então o que mudou com Maastricht, depois de tantas décadas?

A questão estrutural verdadeiramente nova é que as burguesias europeias pertenciam já ao mesmo quadro do imperialismo, o imperialismo global liderado pelos EUA. As burguesias europeias, sobretudo as que projetam as transnacionais no mundo, não pretendem mais o conflito entre as potências do Velho Continente, mas querem a fusão de capitais no âmbito dos negócios do mercado global. De facto, constituiu-se sob outra forma, e diferentemente da realidade imperialista dos primórdios do século XX, uma união europeia reacionária, uma espécie de fusão nuclear a frio. Esta união europeia pretende ser uma e apenas uma federação imperialista além-fronteiras. Como vimos, esse objetivo atravessa dificuldades mas não aniquila esse polo imperialista.

Nessas condições, havendo a perceção de que existia um imperialismo global com várias potências, uma parte da esquerda comunista e popular reconhece pós-Maastricht que o processo de integração europeia não só se confirmara, como se consolidava.

A decorrência lógica dessa conclusão foi a de que o combate se estendia do plano nacional ao plano das fronteiras da União Europeia, visto as orientações políticas capitalistas serem as mesmas para cada um e para todos os Estados-Membros.

Desde então, o campo de afirmação do socialismo não está confinado a um país, e tem-se entendido que a luta de classes tem de ter um desfecho de rutura mais alargado geograficamente. Essa rutura deve desejavelmente incluir alguns dos países centrais da União Europeia. O facto de esta esquerda discordar e combater a União Europeia federalista não a demove de aí participar. Entendemos a União Europeia como uma imposição imperial, um domínio militarista para si e para terceiros, um fator de exploração do trabalho e de centralização do capital. Contudo, esta esquerda leva a sério o conceito de Europa pela escala global da política, pela escala que o socialismo poderá ter, pela pujança alargada das lutas sociais contra-hegemónicas. No mundo de hoje, não há mais “micro-socialismos”.

Esse processo de identificação de novas realidades e novas respostas aos mais recentes quadros de estruturação do capitalismo diferenciou as esquerdas europeias entre “europeístas" e “patrióticas”. As designações são equívocas, embora vulgarmente utilizadas. Registe-se, quer de um lado, quer de outro, podem assumir-se posições progressivas quanto à Europa, em geral, e quanto ao respetivo país, em particular. O que importa é que uns convergiram para uma “esquerda europeia” e outros manifestam-se “soberanistas”, mantendo-se neste caso como no passado pré-Maastricht. É fácil de referenciar a posição do Bloco de Esquerda e aquela que incumbe ao PCP, por exemplo, nesta grelha de leitura. O tempo desta diferenciação ideológica é já suficiente para se afirmar que se produziram desenvolvimentos partidários distintos e que isso constitui um elemento estratégico distintivo da individualidade de cada força. Para a “esquerda europeia”, à esquerda do PS, trata-se de convergir na oportunidade de mudanças no quadro da luta de classes que Berlim impõe. Para os “soberanistas” trata-se, pela negativa, de não ceder ao “federalismo europeu”, havendo sempre a expectativa de uma Cuba viável no nosso rincão. Por isso, se aponta aos “soberanistas” um nacionalismo estreito.

Estas diferenciações no mapa de múltiplos partidos europeus têm cadência e forma variáveis, mas podemos afirmar sem receio de errar que conforma as tendências descritas.

Qualquer que seja o futuro da eurocoisa, a esquerda que pretende o socialismo, democrático e plural, precisa de alianças europeias e de trilhar caminhos comuns. A ilusão do socialismo num só país, com a dimensão de Portugal, o mais que pode dar, e não é nos tempos mais próximos, é uma “social-democracia num só país”. Mesmo com otimismo será sempre uma caricatura, desmentindo a utopia.

Lisboa, 5 de dezembro de 2015