Anteprojeto de tese à V Assembleia da Esquerda Alternativa apresentado pela Comissão de Teses
O modelo austeritário e conservador
1. As constituições europeias do pós-segunda guerra mundial, no lado ocidental, tal como as constituições, mais tardias, que resultaram do derrube do fascismo nalguns Estados do sul europeu, consagraram, embora em diferentes graus, uma cidadania com direitos sociais e laborais. A força da mobilização popular e a ameaça do socialismo possibilitaram um conjunto de cedências do Capital. Propriedade pública em setores importantes da economia, impostos elevados sobre o capital e direito do trabalho formaram a base daquilo que se chamou Estado Social.
2. Porém, a vingança do capital contra os modelos sociais europeus começou há muito. Os frutos do aumento da produtividade nunca foram partilhados e as crises do capitalismo aceleraram a rapina das bases materiais do Estado Social. Inicialmente, esta vaga fez-se sob a bandeira neoliberal, o “There is no Society” de Margaret Thatcher. Vivemos agora num tempo em que a Big Society de David Cameron corresponde à imposição de uma via austeritária ao seu próprio povo. Faz-se referência ao caso britânico mas ela é geral na Alemanha de Merkel e na França de Hollande[1].
3. A tese fundadora de Maastricht, e que produziu o otimismo das burguesias durante muitos anos, era de que o “grande mercado europeu” sairia vencedor na economia global liberalizada. Esta tese ruiu quando à crise económica global de 2007-2009 se seguiu uma crise europeia, e com isso intensificou-se ainda mais o ataque ao Estado Social. A situação é particularmente grave nas economias periféricas, como a portuguesa, posto que uma integração económica desigual resulta em perdas de crescimento económico nos países mais fracos, colmatadas com dívidas públicas crónicas. Entretanto, as economias europeias foram parasitadas pelo mesmo flagelo: as injeções massivas de capital na banca provocaram um agravamento severo das dívidas dos países. A política de cortes na despesa pública degrada o modo de vida da classe trabalhadora e afunda as economias nacionais. A austeridade só traz recessão, mas nada disso importa à ideologia dominante, pois a dívida é só um pretexto.
4. A burguesia, apoiada nos governos das potências europeias, está a impor um novo modelo aos povos da Europa. O modelo austeritário e conservador é avassalador contra as constituições dos Estados e frequentemente opera à margem do próprio direito europeu, que só vale nas disposições que servem a austeridade. As metas orçamentais são um pretexto, os eurocratas de serviço, normalmente corruptos como Juncker e Dijsselbloem, querem realmente decidir acerca de aumentos de impostos sobre o povo, privatizações incessantes, agravamento do código do trabalho, enfraquecimento da administração territorial, e esvaziamento dos serviços públicos.
5. As metas orçamentais impostas pelo Eurogrupo são arbitrárias. A prova é que não estão interessados em eliminar a parasitagem do Orçamento do Estado (como a banca ou as Parcerias Publico-Privadas). O Estado austeritário, para além de destruir a contratação coletiva e os direitos legais dos trabalhadores, subsidia diretamente o abaixamento dos custos do trabalho (eternos falsos estágios) e gere novos mecanismos de trabalho forçado (dito socialmente necessário). O Estado austeritário dá garantias ao rentismo: essa é outra via do saque capitalista. É o caso dos fundos de pensão, saúde, educação, transportes e tudo o que é público e mexe são rendas a transferir para o lucro privado.
6. Este é um problema que não afeta apenas os países intervencionados pela Troika. Noutros países a política BCE/FMI vai entrado em pacotes de austeridade sempre com a desculpa de que isso é para não ter de “chamar” o FMI e em nome do sacrifício nacional. Por isso os valores salariais têm vindo a desvalorizar em toda a União Europeia, numa espécie de competição asiática. Mesmo na Alemanha, os chamados mini-jobs são uma forma de agravamento da exploração dos trabalhadores: conjuga-se o subemprego com o abaixamento do custo do trabalho.
7. A carga fiscal imposta pelo modelo austeritário está longe de poder passar por política liberal, mesmo na Alemanha. A carga fiscal muito dura não é apenas característica dos países sob intervenção da troika, a isso junta-se o processo da união bancária e outras metas de regulação da concorrência que mostram a intencionalidade das elites controlarem alguns aspetos críticos da deriva neoliberal. A matriz ideológica dominante é o conservadorismo. Se é certo que as ideologias burguesas não primam pela coerência, também é verdade que é cada vez mais determinante no discurso do poder a justificação moral da austeridade como um castigo que expia o pecado de “viver acima das possibilidades”. O discurso do “elevador social” deu lugar ao discurso da exclusão e da caridade.
8. A xenofobia e nacionalismo dos mais fortes dialogam e alimentam-se deste modelo. A culpa dos povos do sul, dos imigrantes, dos refugiados, todos eles são bodes expiatórios para dividir a classe trabalhadora dos vários países da Europa.
A oposição popular à austeridade
9. A partir de 2010, tiveram lugar protestos anti-austeridade que mobilizaram centenas de milhares de pessoas na Grécia, no Estado Espanhol, em Portugal e na Irlanda. Houve desde mobilizações de caráter geral (contra os cortes e os orçamentos, contra as intervenções da troika CE-BCE-FMI), até outras de caráter mais específicos (contra o aumento das taxas da água, na Irlanda, ataques ao Serviço Nacional de Saúde e aumentos de propinas em vários países). O caráter de mobilização cidadã geral foi mais expressivo, apesar de os protestos populares terem sido acompanhados e, por vezes, articulados com greves e lutas sindicais.
10. A tradução política destas lutas é desigual. Na Grécia a luta anti-austeridade levou a Esquerda Radical à liderança do Governo em janeiro de 2015. Em Portugal e em Espanha, apesar das forças de direita continuarem a ser mais votadas, seguidas pelos partidos da Internacional Socialista, dá-se um crescimento das forças anti-austeridade. E tudo indica que o mesmo vá suceder na Irlanda com o Sinn Féin.
11. De todos estes casos, há um que principalmente nos obriga a tirar lições para o futuro. As forças políticas anti-austeridade, embora heterogéneas e em estádios de luta muito diferentes, devem tirar três importantes lições do que aconteceu na Grécia. Primeira lição, que é possível fazer o caminho da alternativa e chegar à liderança de um governo. Segunda lição, que mais tarde ou mais cedo as potências e as instituições europeias vão querer esmagar essa alternativa. No caso dos países que fazem parte da união monetária, o euro pode ser usado como arma, pelo que é necessário um plano B. Terceira lição, percebe-se que liderar um governo anti-austeridade não chega só por si, é preciso uma aliança internacional. Fica uma lição extra para os países do euro: ante a capitulação de Atenas, contra o seu povo, a bandeira da saída do euro confronta-se com o facto de que esta não será uma saída negociada e apoiada, é antes uma saída em rutura, é uma saída de confronto.
12. Até ao momento, o ponto mais alto dos protestos foi o referendo em que o povo grego disse Não à austeridade, contra todas as chantagens. Que o Governo Tsipras tenha agido contra a coragem demonstrada do seu povo é uma lição contra o governismo, e não invalida a importância do referendo como forma de luta, antes lhe dá plena dimensão.
Outra Europa contra os muros
13. A decomposição atingiu a União Europeia. As resposta à crise dos refugiados e à crise do euro mostram tudo menos unidade política e soluções multilaterais. A paralisia da maquineta europeia, conjugada com a obstinação com tratados em perda aprofundam a desagregação comunitária. A linha da frente do acervo comunitário, o Acordo de Schengen e o euro, é ameaçada pelo regresso dos nacionalismos retrógrados. Ao mesmo tempo e num paradoxo absurdo regista-se a fuga para a frente: o federalismo autoritário (com a Alemanha e a França a liderar) insiste em “aprofundar a integração”, ou seja, aumentar o controlo sobre os orçamentos e política económica e social dos Estados-membros.
14. A crise dos refugiados é usada como arma ideológica do regresso da extrema-direita. A crise dos refugiados não é uma catástrofe natural. A mão das potências europeias e dos EUA está presente desde a ordem económica desigual até a intervenções militares diretas no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria. Instabilidade social, destruição económica e emergência do fascismo (Daesh) são fruto dessa política internacional agressiva.
15. A xenofobia e o discurso anti-imigração dos neofascistas vai fazendo caminho também na prática, quer dos governos conservadores, quer no que resta dos socialistas europeus. Basta ver o presidente Hollande a alimentar o discurso do choque de civilizações e a fazer aprovar um estado de exceção permanente a pretexto que o terrorismo tem origem na emigração islâmica e uma lei que possibilita a retirada da nacionalidade de franceses que sejam considerados terroristas.
16. É preciso desconstruir o discurso sobre a chamada vaga de refugiados. Apesar do alarmismo xenófobo, o número de refugiados e migrantes representa ao nível da União Europeia menos de meio ponto percentual em relação à população total, o que nem sequer é suficiente para repor o défice demográfico europeu. Isso não significa desvalorizar a chegada de mais de um milhão de migrantes e refugiados, em 2015, o quádruplo do ano anterior. No caminho morreram cerca de 3700 pessoas só na travessia do Mediterrâneo em 2015[2]. Vítimas da guerra e da destruição económica, as pessoas que chegam pela via mediterrânica são originárias da Síria (48%), do Afeganistão (21%), Iraque (9%), Eritreia (4%), Paquistão (3%), Nigéria, Somália, Sudão, Gâmbia e Senegal.
17. A crise dos refugiados fez reforçar brutalmente as fronteiras externas e reerguer muros internos. Vários países (Alemanha, Áustria, Eslovénia, Hungria, Suécia e Noruega) suspenderam o Acordo de Schengen, restabelecendo durante alguns meses o controlo de fronteiras. Entretanto, em França, também os ataques de Paris (novembro de 2015) foram invocados para a suspensão de Schengen. Soma-se a estes episódios o vergonhoso muro de arame farpado de 175 km construído pela Hungria ao longo da fronteira com a Sérvia.
18. As barreiras à mobilidade são mais um instrumento das classes dominantes e das potências. Ao mesmo tempo que há vistos gold para detentores de grandes fortunas, são erguidos muros contra quem foge da miséria de países destruídos. A hipocrisia de querer lançar refugiados e migrantes na clandestinidade visa igualmente permitir que estes possam sempre ser ilegalmente explorados conforme as necessidades temporárias do capital.
19. O Acordo de Schengen pretende garantir a livre circulação interna, mas não é um marco para a liberdade, por ser simultaneamente a base da Europa fortaleza. Para a Frontex e o Eurosur[3], todos os meios parecem válidos para vedar a Europa, ou seja, impedir a entrada de migrantes de outros continentes. A UE inclusivamente subcontrata Estados fronteiriços para fazer o trabalho sujo de expulsar refugiados e migrantes. E não nos podemos esquecer que foi essa uma das vias que sustentou ditaduras na vizinhança europeia.
20. A política agressiva de Schengen está atingir outro nível com a sua articulação com a NATO. O clima militarista intensifica-se, agora que os governos da Alemanha, da Turquia e da própria Grécia apelam à NATO para uma missão no Mar Egeu, a pretexto de combater as redes de tráfico de migrantes e refugiados e para vigiar a fronteira da Turquia com a Síria. A lógica da “guarda costeira” e do “exército” europeu ou de interferências da NATO continua a ser uma resposta que convém ao poder das potências.
21. A livre circulação, incluindo de refugiados e migrantes, é a bandeira pelo qual a esquerda se deve bater a nível europeu. Nada disso implica ter de receber quaisquer criminosos de guerra ou redes terroristas. Esta visão é mais realista, mais exigente e mais humana. A alternativa à livre circulação é deixar centenas de milhares de pessoas abandonadas ao tráfico humano e à morte na travessia de fronteiras.
22. A livre circulação exige solidariedade internacional. Há países que por serem fronteiriços (como a Grécia) ou socialmente mais atrativos acabam por ser mais pressionados pelo crescente fluxo de migrantes e requerentes de asilo. É necessária uma verdadeira política comum e solidária. São necessários corredores humanitários para evacuação das vítimas dos teatros de guerra e meios de acolhimento partilhados entre os diferentes Estados europeus.
23. O combate frontal com a demagogia de Marine Le Pen e todos os outros neofascistas tem que responder aos valores da democracia, da inclusão social, do humanismo, tudo valores inscritos na Carta e nas convenções das Nações Unidas. A contemporização com os neofascistas que leva a políticas migratórias restritivas alimenta o reacionarismo político e acabará por devorar os conciliadores.
A armadilha da União Económica e Monetária
24. No quadro do Tratado Orçamental, as democracias estão sob ameaça permanente. O golpe através do Banco Central Europeu contra a democracia grega ficou para exemplo. A mesma moeda para economias tão desiguais como a dos Estados da zona euro exige transferências orçamentais solidárias dos países que mais beneficiam da política monetária comum. Na ausência dessa solidariedade internacional, o fosso entre as economias mais fortes e as mais fracas aumenta. Atual crise da zona euro é prova disso.
25. Os problemas das economias da periferia do euro são, contudo, prévios à própria união monetária. As políticas do mercado comum europeu reforçaram a dependência destes países através da destruição de setores fundamentais do seu aparelho produtivo. Apesar dos fundos de coesão, o resultado principal da integração económica foi colocar a periferia numa dependência crónica face às economias centrais. Os défices permanentes não são fruto de “despesismo” com o Estado Social, são resultados necessários dessa desigualdade estrutural.
26. As alternativas socialistas formam-se a partir das condições atuais. Não existe um passado idílico pré-euro ou pré-mercado europeu. Note-se que em Estados europeus com moeda própria (como o Reino Unido), as classes dominantes também conseguiram impor a política de austeridade, sacrifícios do trabalho para salvar a banca. A crise não é o euro. O capitalismo é a crise.
27. Romper com a União Económica e Monetária poderá revelar-se necessário: se continuar na zona euro significar ter de trair as aspirações de mais justiça social e de desenvolvimento. Romper com o Euro pode ser uma consequência da luta anti-austeridade mas não é uma estratégia de mobilização popular, nem muito menos um caminho para o socialismo.
28. As propostas que apostam exclusivamente numa via nacional colocam de parte possibilidades mais avançadas. Há um imenso potencial de transformação social na solidariedade entre os trabalhadores e os povos da Europa. No mundo da globalização capitalista, qualquer Estado europeu que queira resistir isoladamente ao domínio do capital financeiro terá sérias dificuldades em fazer face a potências como os Estados Unidos, a China, ou o que restar da UE.
29. São óbvias as limitações da capacidade de resistência isolada de cada pequeno Estado às atuais ofensivas do capital. Basta pensarmos na forma como os novos acordos de comércio de serviços (TiSA) e de livre-comércio intercontinental (TTIP e CETA) são hoje negociados de forma obscura pela União Europeia[4].
30. Uma esquerda que queira ser alternativa não pode desistir de um plano político para reestruturação da dívida e de impô-lo no quadro internacional mais geral, via necessária à libertação de recursos para políticas que correspondam aos interesses dos trabalhadores. Pelas mesmas razões, a esquerda não pode desistir do debate acerca do futuro da Europa e da União Económica e Monetária. Primeiro, é necessário eliminar o Pacto de Estabilidade e o Tratado Orçamental. Em segundo lugar, deve-se bater por critérios orçamentais que tenham em conta as diferenças de PIB dos vários países. Em terceiro lugar, defender uma política de redistribuição que compense os estados prejudicados pela livre circulação de mercadorias e capitais. Estas são as questões prévias a um processo de refundação democrática do tratado europeu, impulsionado pelos cidadãos. As bandeiras políticas são o referendo e o avanço das alianças sociais e de esquerda, no âmbito da União Europeia. O que pode testar a dupla relação de forças, no país e nas instituições europeias, é o que é preciso enfrentar: conquistar referendos em cada país sobre a política europeia, designadamente o Tratado Orçamental; e reforçar o protagonismo das alianças sociais e de esquerda em ações cada vez mais comuns.
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[1] “A sociedade não existe”; Grande sociedade.
[2] Nas primeiras cinco semanas de 2016 já se somaram mais 400 (dados da Organização Internacional para as Migrações).
[3] Frontex (Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia) e Eurosur (Sistema Europeu de Vigilância de Fronteiras).
[4] TiSA - Acordo sobre o Comércio de Serviços; TTIP - Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, entre a UE e os EUA; CETA - Acordo Global sobre Economia e Comércio, entre a UE e o Canadá.