Em Setembro teve lugar uma reunião em Atenas, a convite de Alexis Tsipras, primeiro-ministro grego, que juntou os líderes de vários Estados-membros da União Europeia, todos do sul.
Hollande, França, Renzi, Itália, Costa, Portugal, Anastasiades, Chipre e Muscat, Malta. A Espanha, desmerecendo da iniciativa enviou um secretário de Estado. Que se propunha Tsipras? Segundo os seus termos, uma “frente contra a austeridade”. A austeridade, pior que o memorando da troika para Portugal, é a que Tsipras aplica na Grécia por subordinação à Alemanha. Tsipras, ainda por cima, está perto de encaixar mais um resgate, o seu segundo, depois de ter ganho as eleições a proclamar que não aceitava nenhum resgate. Os seus amigos socialistas não o levaram a sério nesta oportunidade. Que posição tomaram eles? Hollande preconizou a militarização da União Europeia, Renzi ainda falou da austeridade sem apontar proposta, Costa reclamou investimento dos países ricos nos países pobres. Nada de "frente" surgiu, como se viu logo a seguir na Cimeira de Bratislava, onde a estratégia de todos se articulou pela militarização europeia, usando o eufemismo do reforço da segurança da fronteira externa, e de modo mais aberto pondo na agenda a preparação de um exército europeu.
Devemos concluir deste contexto, tão significativo quando se cruzam crises económico-financeiras, tragédias humanitárias sobre os refugiados, fragmentação da União, que os socialistas europeus não têm qualquer plano alternativo aos conservadores, nem em matéria económica nem em matéria política. Não quer isto dizer, automaticamente, que os partidos, mesmo os socialistas, sejam todos iguais, mas objetivamente partilham o austeritarismo como modelo económico e regulador social. A que se deve essa afinidade? Uma afinidade que levou muita gente de esquerda à desmoralização e abandono da luta política, engrossando a indiferença ou a direita radical.
1 - É habitual atribuir essa viragem da social-democracia, outrora empenhada no ‘Estado Social’, ao surgimento do blairismo. Foi Tony Blair que nos anos 90, após a queda da URSS, propagou a chamada terceira via entre o capitalismo e o socialismo. Isso não passava de um disfarce para aderir, de facto, ao capitalismo neoliberal: privatizações, desregulação dos mercados, pilotagem da competitividade, embuste do capitalismo popular. Percebe-se: a burguesia europeia precisava de competir com os preços baixos da Ásia (com a China à cabeça) e os seus terríveis níveis de condições de trabalho.
Neste quadro, o ‘Estado Social’ saía caro e daí aliciarem a social-democracia para o "Estado Mínimo". Essa viragem foi logo acompanhada na Alemanha e na generalidade dos países europeus. Portugal não ficou à margem, até porque já vinha num processo de recuperação capitalista depois da revolução do 25 de Abril, isso proporcionou que Guterres fosse o recordista das privatizações. Da família do PS europeu, o partido que resistiu a esta onda direitista até mais tarde foi o Partido Socialista Francês, até chegar Hollande a capitão dessa nau e tomar a vanguarda da viragem direitista do PS europeu.
Sem dúvida, aqui criou-se o que se tem denominado por social-liberalismo: socialismo nas palavras, liberalismo nos atos. Podemos determinar esse período como o óbito da antiga social-democracia organizada e das anteriores pretensões de atingir o socialismo por via pacífica baseada na redistribuição dos rendimentos do capital.
2 - Contudo, antes dessa capitulação ideológica e prática houve um processo que tornou isso possível. E esse processo não é suficientemente assinalado. Aliás, a resposta à pergunta se pode a social-democracia ressuscitar nos velhos partidos que se passaram para o social-liberalismo, só se pode fundamentar na análise desse processo anterior.
Os primeiros partidos a capitular foram o português, o grego e o espanhol, cujos países nos anos setenta se livraram das ditaduras fascistas que esmagavam os seus povos. Mário Soares, Andreas Papandreou e Filipe González foram as figuras de referência dessas alterações, habitualmente conotadas com o tema da "erradicação do marxismo". No caso português, temos um PS ainda social-democrata de esquerda na Assembleia Constituinte e, logo a seguir, no governo vai dobrar a espinha ao FMI e à CEE. Ficou célebre a frase de Mário Soares de "pôr o socialismo na gaveta". E pôs. A fragilidade das novas democracias do sul europeu, onde a força sindical não se exprimia nestes partidos, e o cerco e pressão americana levou à abdicação de qualquer avanço socialista, mesmo que reclamassem algo referente à social-democracia sueca liderada por Olof Palme .
Felizmente, a Constituição Portuguesa tinha obrigado à existência de serviços públicos, que é o que resta hoje, serviços sempre ameaçados de destruição. Outros partidos social-democratas, mais frágeis, começaram a seguir o exemplo, em pequenos países da Europa.
3 - No entanto, o que iguala todos os partidos do PS europeu, mas todos em geral, foi terem passado a ter o seu pessoal político saltando de funções em grandes empresas privadas e bancos para cargos de Estado, em autarquias e governos. Ou seja, o que preparou a metamorfose dos Partidos Socialistas foi a promiscuidade de interesses e a ascensão social dos políticos social-democratas e, simultâneamente, gestores do capitalismo. No princípio dos anos 90 dizia a esquerda, com alarido, que os partidos social-democratas estavam completamente fundidos com o grande capital, era talvez exagerado mas refletia a tendência geral.
Nestes partidos são já gerações de dirigentes que se consolidaram, interessados na porta giratória dos negócios, em muitos casos clãs e dinastias. Basta ver o que tem sido o percurso empresarial de vários primeiros-ministros sociais-democratas em toda a Europa. Aqueles que privatizaram, não vão renacionalizar. Aqueles que mercantilizaram serviços públicos não vão contrariar interesses privados instalados.
4 - Em teoria, simplesmente em teoria, podemos até admitir que aconteça uma exceção, devido a uma situação crítica inesperada. Mas a linha política da esquerda não se pode basear numa exceção milagrosa e em fantasias que adormeceram os trabalhadores durante décadas. Veja-se o que se passa com o Partido Trabalhista britânico. Apesar das formidáveis expetativas que se depositaram em Jeremy Corbyn, o seu líder, já reeleito pelas bases e por muitos recém inscritos militantes, depende dos sindicatos e tem contra si 80% dos deputados da sua bancada e o aparelho do partido. Dificilmente, virá a vencer eleições com a resistência do partido. Tudo, aliás, começou a correr mal para Corbyn quando abandonou as suas posições anti-NATO, na miragem espúria de ser primeiro-ministro britânico. Este caso mostra bem a irreformabilidade destes partidos e o espaço objetivo para cisões como, aliás, têm acontecido em França e Alemanha. A experiência de Bernie Sanders e a de Jeremy Corbyn como uma espécie de “outsiders” a jogar dentro de partidos tradicionais, estes capturados pelo capitalismo mais podre e criminal, é uma reflexão em aberto, mas parece certo que no mínimo retardam alternativas à esquerda.
E mesmo os social-democratas mais convictos, também em Portugal,aqueles que são realmente críticos das desigualdades sociais, não põem em causa a economia de mercado e rejeitam qualquer intervencionismo do Estado, ou sequer a expansão do setor público. Há 40 anos que o PS nacional não discute o capitalismo. Parece tempo suficiente para dizer que é uma questão arrumada.
5 - Alguém pode ter a ilusão de que o PS de António Costa pode enveredar por qualquer tipo de confrontação com as instituições europeias. A direita tem explorado a tese dizendo que o atual governo faz da Europa “uma inimiga”. A propensão do PS pela economia de mercado leva a que não haja nenhuma “confrontação”. O capital está ao lado desse mercado que dá pelo nome de União Europeia. Viu-se até, recentemente, que mesmo o capital da City londrina fez campanha pelo sim (“remain”) no referendo que ditou o Brexit. Com certeza que o ideário europeísta como espaço sem fronteiras é importante apesar de estar em agonia. Mas não iludamos que a questão é de pertença a um bloco económico, que a débil burguesia portuguesa não quer abandonar, na mira da recompensa como intermediária de capital estrangeiro. Basta olhar para o sistema financeiro e logo se vê como o PS funciona nessas coordenadas no Banif ou no BPI, entre outros exemplos que aí vêm. Isto não quer dizer que o PS de António Costa não possa ter conflitos, e alguns até duros, com o diretório da União a propósito de políticas que degradam a condição periférica do país e que prejudiquem a sobrevivência do poder atual na Assembleia da República. O conflito de Costa não é com o modelo mas com o menu da época. A cumplicidade Costa/Tsipras mostra à evidência que aconteça o que acontecer não virá desse setor nenhuma "desobediência" à Europa.
6 - A prova de que não houve nenhuma transformação esquerdizante no PS português está no programa eleitoral com que se apresentou à últimas legislativas de outubro de 2015, classificado de “ultra-liberal e vindo de Harvard” como ironizou Portas do CDS. Isto apesar de António Costa ter dito à saciedade que o pior temor para o PS era a PASOKização, ou seja o desaparecimento do próprio partido às mãos da troika. A necessidade de garantir uma maioria parlamentar levou a uma inflexão de centro-esquerda, conjuntural e pragmática. A quadratura do círculo é cumprir o défice imposto e ter investimento. A quadratura do círculo é pagar a astronómica dívida pública e não asfixiar o Estado Social. Não estamos sequer a discutir qualquer avanço socialista mas a garantia da democracia, política e social, que a Constituição desenhou.
7 - A defesa da Constituição é a articulação mínima que é possível estabelecer contra a chantagem de Berlim. A natureza do regime político nacional, assente na Constituição, continua a ser um abcesso nos tratados europeus. De um modo ou outro, essa tensão vai produzir um antagonismo forte. Quer para o PS, que reviu várias vezes a Constituição em conluio com o PSD para a adaptar à Europa. Quer mesmo para a esquerda radical que vê questões que determinam a sua estratégia há muitos anos, nomeadamente a democracia soberana, a serem elementos em disputa já na conjuntura presente. O desenlace dessa encruzilhada irá redefinir forças e direções políticas. Não faltamos na luta, não desdenhamos de qualquer aliado contra a direita, mesmo contigente ou precário, mas não alimentamos ilusões em quem quer que seja, muito menos em fenómenos que longe de inovar visam apenas branquear responsabilidades históricas.
8 - O social-liberalismo fracassou em toda a União Europeia, não conseguindo impor-se aos conservadores e exibindo o presidente do Eurogrupo Dijsselbloem, também socialista, como um "camarada" de excelência. Não parece ter sido um êxito para o social-liberalismo atrair para o seu campo o desastroso Syriza. O PS europeu está mesmo à beira de ter posições irrelevantes em muitos países. Os governos na França e na Itália, únicas fortes referências dos partidos socialistas, estão por um fio. O nosso campo da esquerda, quaisquer que sejam as alianças táticas, tem de preencher esse vazio que eles deixam do centrismo sem bandeira, do oportunismo do bloco central de interesses. Caso contrário, conservadores, e crescentemente fascistas, recebem os descontentes para fazer o ajuste de contas com a sociedade do pós-guerra que trouxe o ‘estado social’.
9 - O apoio, extraordinário e invulgar, do Bloco de Esquerda a um governo minoritário do PS deveu-se à necessidade de apear do poder a coligação PSD/CDS. Isso não seria possível de outro modo face aos resultados eleitorais. Ainda para mais quando essa coligação de direita é mais papista que a papisa Merkel na política conservadora da austeridade e da exclusão social.
Garantias e prática sobre a reposição de rendimentos do trabalho e das pensões, direitos sociais vários e impossibilidade de privatizações, têm justificado essa atitude. Esse acordo de apoio a um governo liderado por António Costa explica aos setores populares a diferença com o passado recente de Passos e Portas. E explica bem.
10 - A necessidade de aprofundar esse acordo com o PS, que o PCP também acompanha, serve para lembrar constantemente que Passos está à espreita. Essa é a finalidade de novas melhorias sociais, traduzidas em orçamento da república ou fora dele. Essas bandeiras, valorizadas como tal, ajudam o Bloco de Esquerda a consolidar o espaço de eleitores e eleitoras que já acreditam na via alternativa de um partido/movimento, jovem, democrático, radical e socialista, como o Bloco. Sobretudo, dar confiança em quem votou por uma rutura à esquerda.
A marca de água para este período são alterações significativas a obter na legislação laboral, onde não há restrições orçamentais mas apenas saber, nesta maioria parlamentar, quem se protege, o capital ou o trabalho? Não são esses acordos que farão o Bloco crescer, só por si, mas a consciência geral de que a imagem que se tem de nós é de um partido dialogante mas independente, e com um programa para além do PS. Aquilo que pode credibilizar a proposta do Bloco, em próximas eleições, é um programa de governo próprio, retirando lições das limitações do PS e recolhendo exemplos da luta de massas.
Não faltamos ao povo quando foi necessário travar Passos e Portas. Contudo, o vazio estratégico do centrismo obriga a tomar opções que libertem o país de um modelo capitalista ultraconservador, definido por uma potência colonial que nos oprime.
A direção da Esquerda Alternativa