Antirracismo e luta de classes - proposta de tese à VIII Assembleia da Esquerda Alternativa
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O racismo não é uma realidade criada pelo capitalismo. O capitalismo rearticulou este sistema de opressão que o precede. A escravatura da idade moderna alimentou a economia das potências marítimas europeias durante cerca de cinco séculos. Vários povos africanos foram escravizados e transportados para outros continentes a uma escala nunca antes vista. Com um plano de dividir para conquistar, as potências europeias colocavam os reinos africanos uns contra os outros. Aliavam-se a alguns, conseguindo colaboração subalterna. Mas submetiam todos, ao impor a sua dominação política, económica, cultural e religiosa. Resultando disso: antigos reinos africanos recuaram socialmente e fragmentaram-se politicamente.
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O problema do capitalismo com a escravatura não é de ordem moral. O capital começa por explorar cada unidade e cada tipo de produção a partir do estado em que o encontra. Só depois os desenvolve para métodos de organização do trabalho mais eficientes. Por isso, trabalho livre e trabalho escravo conviveram e convivem no modo de produção capitalista. As potências mais desenvolvidas economicamente, que substituíram o trabalho escravo pela mecanização e pelo trabalho assalariado, tomaram, de forma interessada, a dianteira no combate ao tráfico de pessoas escravizadas. A própria abolição do tráfico de pessoas escravizadas pelas autoridades portuguesas, primeiro no então Reino e depois nas colónias, teve duas razões fortes. A primeira eram as pressões da potência britânica. A segunda era o próprio objetivo de usar essas mesmas pessoas, primeiro através da continuidade da escravatura nas colónias, depois pelo trabalho forçado, dito contratado, para o seu projeto de exploração económica do interior de África.
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As justificações para a submissão e escravatura dos povos africanos foram procuradas e estabelecidas em revisões da doutrina religiosa, da teologia cristã. Mesmo os africanos e afrodescendentes entretanto batizados tinham nesse registo a marca da diferença “preto” à frente do nome. As estruturas sociais da consciência foram-se transformando com a transição para o modo de produção capitalista. O racismo passa a assumir a forma de “teorias científicas”. A partir da hierarquia estabelecida pelo domínio de uns povos sobre outros, as teorias racistas estabeleceram hierarquias de inteligência e beleza, identificando raças brancas, negras e orientais. Diferenças fenotípicas, antropomórficas e culturais foram elevadas à justificação do domínio de uns povos sobre outros e ao extermínio de populações inteiras, através do recurso às mais sofisticadas tecnologias da segunda Revolução Industrial.
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No final do século XIX, o capitalismo entrou na sua fase imperialista e exigiu a repartição de África entre as potências europeias. O continente africano foi dividido a régua e esquadro entre as potências colonizadoras, gerando um mapa que ignorava etnias, religiões e conflitos existentes entre os povos. Este será a semente de grande parte das guerras que assolam ainda hoje o continente Africano. Nesses territórios gerou-se inicialmente uma estrutura de domínio entre a sociedade dos colonos e as sociedades africanas. O avanço da dominação capitalista foi desagregando as sociedades africanas e impondo a integração forçada e subalterna destas populações numa estrutura de classes colonial. Havendo sempre camadas intermédias, um abismo racial tornava evidente a fratura social gritante dessas estruturas de classes - porta aberta para lutas de emancipação nacional marcadas pelos interesses dos explorados e oprimidos. Só no final da segunda guerra mundial, em 1945, por força dos seus próprios movimentos de libertação nacional e das pressões e interesses dos EUA e URSS, se iniciaria a primeira grande vaga da descolonização, principalmente na Ásia, mas também nas Américas e Oceania. O imperialismo das velhas e novas potências continua a dominar de forma particularmente intensiva os povos dos novos estados.
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Nos países coloniais, como os EUA, a classe trabalhadora formou-se quer pelos afrodescendentes, cujos antepassados tinham sido escravizados, quer por sucessivas vagas de trabalhadores europeus, asiáticos e latinoamericanos. A hierarquização arbitrária das “raças”, que, aliás, variava de empresa para empresa e ao longo do tempo, cumpria a função de dividir trabalhadores e colocá-los em competição entre si. As racializações, processos sociopolíticos de domínio, faziam atribuir vícios e virtudes às diferentes “raças”. Os hábitos incorporados pela posição social e inserção profissional de determinados segmentos da população eram naturalizados como próprios de uma dada “raça”. Sucessivamente várias vagas vão sendo incluídas na branquitude, mantendo sempre exclusões.
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Trabalhadores considerados brancos confundem os seus interesses com os da classe dominante devido ao chamado “privilégio branco”. Compensam a precariedade da sua posição social com a participação simbólica no mundo dos dominantes. Mas o privilégio não é só simbólico, é historicamente efetivo, com direitos liberdades e garantias legais diferenciadas, com remunerações superiores. E mesmo para além da igualdade legal conquistada, a subalternização dos “não-brancos” persiste socialmente.
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A identificação das políticas sociais com camadas racializadas da classe trabalhadora tem sido uma arma nas mãos do capital e dos seus representantes políticos. Trabalhadores considerados brancos numa dada sociedade são, assim, mobilizados contra os seus próprios interesses. O projeto de acabar com o rendimento social de inserção, com o subsídio de desemprego, com as políticas de apoio à habitação ou com outros serviços e direitos sociais passa a contar com apoios entre os principais prejudicados pela destruição social.
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A política do ódio etnorracial, tal como a homo/transfobia e o machismo, tem sido levantada como bandeira dos ultras, chamem-se eles Le Pen, Trump ou Bolsonaro. Minorias étnicas, nacionais e religiosas são apontadas como inimigos externos e internos. Refugiados sírios, franceses de origem magrebina, emigrantes mexicanos, índios, quilombolas e favelados, comunidades africanas ou ciganas, os alvos mudam de nome mas são sempre o bode expiatório que garante a continuidade do poder dos dominantes.
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As pessoas racializadas não são todas da mesma classe. A racialização tem uma relação íntima com a estrutura de classes mas não se confunde com ela. Daí que existam movimentos e programas antirracistas liberais, sociais-democratas e socialistas. Correspondendo, assim, a diferentes interesses de fração de classe. O antirracismo liberal pode contentar-se com as garantias de igualdade formal e de tratamento perante as instituições do Estado e do mercado. O antirracismo social-democrata pode ver nas políticas de quotas etnorracias e nas políticas sociais dirigidas um fim em si mesmo. O antirracismo socialista e anticapitalista não rejeita como programa antirracista imediato as conquistas possíveis dentro do capitalismo, mas não desiste de ir à raiz da opressão etnorracial: a exploração e a opressão endémicas às sociedades de classes e o domínio de umas nações pelas outras.
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Na sociedade portuguesa, a discriminação etnorracial é sofrida por trabalhadores imigrantes em geral e, principalmente, os não-europeus e por cidadãos e cidadãs portugueses ciganos e afrodescendentes. Nos últimos anos, têm-se estruturado os movimentos sociais correspondentes. O movimento antirracista em torno das lutas contra a violência policial e por maior representatividade nas instituições democráticas. E o movimento dos imigrantes tem-se mobilizado principalmente pelos direitos do trabalho e pela legalização dos trabalhadores indocumentados, uma luta protagonizada principalmente por trabalhadores de origem paquistanesa, indiana e nepalesa. Ambos os movimentos se têm empenhado na luta por uma nova lei da nacionalidade que inclua na cidadania portuguesa todas as pessoas nascidas em Portugal. Estas lutas, a par das lutas feministas, têm trazido novos debates para a discussão. O conceito de interseccionalidade (entre ‘raça’, género, classe, sexualidade, capacidade física e intelectual etc.), originário da crítica do direito feita pelo feminismo negro norte-americano, tem sido mobilizado para articular as várias lutas sociais. Essa análise e linha de transformação social pode ser uma ferramenta para levar mais além o pensamento avançado pelas feministas socialistas negras, com a tríade classe, ‘raça’ e género. Um desafio ao pensamento teórico e estratégico a que a esquerda marxista precisa de saber corresponder.
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Como em relação a outros movimentos sociais e às suas causas, a autonomia de agenda e organização dos movimentos antirracistas e de imigrantes fortalece o campo progressista nas luta sociais.
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As populações racializadas, ao conterem em si setores pertencentes a diferentes classes e diversas culturalmente, são mobilizáveis para diferentes projetos políticos, fruto dos seus interesses e convicções.
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Para uma maior mobilização e unidade da classe trabalhadora em Portugal, exige-se à esquerda que, por um lado, corresponda aos interesses gerais da causa antirracista. Por outro lado, exige-se à esquerda uma maior capacidade de corresponder aos interesses específicos das camadas imigrantes, afrodescendentes, ciganas e de outras minorias sociais que pertencem à classe trabalhadora do país.
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Um maior trabalho junto das populações empurradas para a periferia dos grandes centros urbanos é parte deste caminho. Só esse trabalho abre portas a uma maior participação militante destas populações politicamente sub-representadas. Essa linha de ação fortalecerá a esquerda e ajudará a levantar as bandeiras da solidariedade que fazem da causa das minorias exploradas e oprimidas - a causa comum de uma maioria social transformadora.
Comissão de teses: Pedro Filipe Soares, Bruno Góis, Fabian Figueiredo, Humberto Silveira, Isabel Pires, Joana Mortágua, Luís Fazenda, Mariana Aiveca, e Sandra Cunha.