9 Teses sobre a situação política

1- A situação nacional está hoje enredada numa vaga de interrogações. Não vivemos apenas uma conjuntura agravada relativamente a anteriores. Processam-se alterações, ainda em curso, de reconfiguração do regime capitalista. O que sempre reaviva fantasmas mas, ao mesmo tempo, cria novas etapas da luta popular. Em Portugal, estamos até num momento confuso sobre o entendimento do estado do país e do próprio regime político. Basta olhar para a discussão, "se o país está melhor ou pior", ou para os ataques ao Tribunal Constitucional. Sem dúvida, a intervenção da troika desde 2011, controlando o governo e reduzindo o parlamento a um papel decorativo, está na origem desse facto. E a iminente substituição da troika, em maio de 2014, por uma tutela indireta da União Europeia, gerando a controvérsia sobre as saídas “limpas” e “sujas” do pós-troika, também contribui para obscurecer a natureza dos conflitos presentes.

Se a troika não passou de uma intendência de fiscais diretos do imperialismo para impedir o colapso do mercado de capitais, o tipo de tutela indireta que lhe sucede, não menos rígida, está ainda difusa. A "vigilância europeia" do capitalismo português vai operar através do controlo orçamental e económico. À partida, o Ecofin e a Alemanha garantem todas as cartas deste jogo. Não se pode alimentar ilusões. A expetativa de regresso à "normalidade" europeia, à situação anterior à intervenção externa, é muito forte no sentimento popular, mas não tem fundamento.

Por um lado, a União Europeia mudou muito neste período, mesmo para os países que não estavam sob o jugo da troika, fruto das consequências da crise do capitalismo de 2007/2008, ainda não debeladas. A União Europeia impôs políticas de austeridade em geral. Isto é, contração do investimento público, cortes nos serviços públicos e despesa social, precarização dos mercados de trabalho, simulando ser essa a única forma de reduzir o défice do estado e ter sólidas contas públicas. Ou seja, a receita está a ser a mesma, com diferenças na aplicação dos estados-membros devido ao diferencial da capacidade económica.

Por outro lado, apesar da propaganda da elite lusa, Portugal é visto lá fora como uma coisa à deriva, à beira de outro resgate, com uma dívida-bomba, o que aperta as condicionalidades impostas por Bruxelas. Este entra-e-sai de quem policia o capitalismo português apaga substancialmente na consciência social a real natureza da luta política em marcha no país. A saber: a burguesia está a fazer uma transição de regime, a via pacífica para um regime conservador.

2 - Como é conhecido, o capitalismo tem tido ao longo do tempo várias modalidades económicas e políticas. Essas modalidades são o resultado da história concreta da luta de classes, nos vários espaços das contradições nacionais e internacionais. Depois da revolução de 25 de Abril, Portugal viveu até hoje com a esquizofrenia da Constituição de 76. Isto é, uma Constituição socialista como bússola para um regime capitalista. Constituição aprovada até por grande parte da direita, devido ao pânico de uma guerra civil no país. Contudo, isso passou-se quando as veleidades socialistas de 74/75 já tinham sido derrotadas pelo golpe militar de novembro de 75.Ou seja, o socialismo perdeu-se durante o próprio mandato da Constituinte. Por isso, e no decurso de muitos anos, o regime democrático-constitucional foi "restabelecendo a normalidade" liberal. Desse facto são prova as desfigurações e plásticas que se fizeram à Constituição de 76:eliminação do conselho da revolução como árbitro constitucional, retirada da opção socialista, fim das nacionalizações e da reforma agrária, introdução das privatizações e da economia de mercado como vetor, redução da proporcionalidade eleitoral, vinculação à ordem jurídico-política da União Europeia, entre outras adaptações menores.

O neoliberalismo reinante na esfera internacional desde os anos 80 acelerou bastante essas alterações. Sobretudo, através da pressão dos governos europeus em cima dos governos domésticos liderados por PS ou PSD. Contudo, ainda hoje, a Constituição mantém um conjunto de garantias sociais e democráticas que entram claramente em colisão com os intentos da contra-reforma da burguesia conservadora em Portugal. Os episódios recentes de conflito entre o governo de direita e o Tribunal Constitucional são uma amostra dessa incomodidade. O que está sob fogo é a "constituição social" para ser substituída pelo assistencialismo, mais barato para o estado e mais "caro" à burguesia tradicionalista, habituada à dominação política da misericórdia social.

A pretendida constitucionalização do défice máximo, cortando no Estado Social mas baixando os impostos ao capital, é a máscara do assalto aos direitos sociais. Mais cedo ou mais tarde, sob este ou aquele pretexto, a elite vai querer impor o plebiscito constitucional, ou farsa equiparada de lavagem da Lei Fundamental. A exaltação ideológica das virtudes da austeridade não era apenas uma peculiaridade da ditadura fascista no passado, é a cartilha atual, em tudo conservadora e pseudo moralizante da classe dominante. Acresce, e é grave, que uma viragem semelhante está a acontecer em Espanha e em vários países europeus. Devemos, no entanto, reconhecer, quanto a Portugal, que se já havia sinais claros dessa inversão conservadora, o estalido de partida desse processo acontece com o desembarque da troika no aeroporto de Lisboa.

3 - Quando abordamos o capitalismo português referimo-nos a um capitalismo frágil, o que acentua sempre os traços reacionários pela insegurança dos dominadores. Os maiores capitalistas em Portugal dominam na finança, na distribuição, nos serviços. Essa "especialização" acompanhou uma desindustrialização forte da nossa economia.

O capital financeiro, não apenas o internacional mas também aquele que ainda se apresenta como nacional, tem feito grandes "negócios da china" através da dívida pública, das privatizações, da exploração de monopólios naturais. Isso encaminhou cada vez mais a burguesia portuguesa para o rentismo, viver de rendas garantidas pelo Estado, pelas suas posições de propriedade e absorção fiscal direta e indireta.

O debate em curso sobre a reindustrialização parece irrealista no contexto atual de grande quebra de investimento público e privado. Essa reindustrialização só terá lugar na condição de atrair capital estrangeiro para incentivar indústria de bens de consumo e equipamentos ligeiros, em larga medida para exportação. Afinal, o modelo já vigente mas com modernização. O paradigma é o êxito da reconversão do setor do calçado, exemplo a expandir aos produtos tradicionais e juntando-lhe outros produtos de inovação, sobretudo em marcas de tecnologia. Ou seja, uma mini-industrialização, sem a grande indústria, rebocando milhares de pequenas empresas. Percebe-se: a burguesia de origem nacional cada vez compete menos nos serviços multinacionais e tem poucos nichos industriais, fora da construção, que se articulem como indústria de escala para exportação.

A nova etapa é também o aproveitamento do mar, apregoado como salvação pátria. Trata-se de portos, pesca e aquacultura industrial, química da flora marítima, energia, equipamento naval e plataformas, etc. Tudo isso tem hoje um minúsculo contributo para o PIB mas tem de facto um potencial enorme. Não desacompanhamos essa perspetiva mas combatemos mais uma etapa para novas rendas do aluguer do mar como fonte de acumulação do capitalismo luso. O modelo de aluguer implicará também rentismo noutros aproveitamentos da natureza, quer do solo quer do subsolo.

Em conclusão, o capitalismo português tem características cada vez mais parasitárias e de dependência externa, independentemente de eventual relançamento de produção de bens transacionáveis. O modelo europeu, no pós 25 de Abril, fez sobreviver a burguesia e o seu rentismo mas enfraqueceu-a como classe na disputa internacional.

4- A dívida! Que papel ocupa a dívida pública e privada no crédito do país e nas necessidades de financiamento de um estado deficitário? A dívida pública, aliás crescente, a 130% do PIB grosso modo, e a privada que é maior, não é sustentável nem a longo prazo de décadas face aos rendimentos do país e das empresas.

A dívida tem funcionado a dois tempos: como negócio de usura mais rentável do capital, e como justificação oficial para a austeridade, para o saque fiscal do trabalho e para o corte de salários diretos e indiretos. Funcionando como chantagem, justifica a alteração nas relações laborais, permitindo aos estados as alteração legais mais duras e selvagens, enfraquecendo a capacidade de unidade e mobilização dos trabalhadores.

A principal arma para a reestruturação da dívida é a nacionalização da banca portuguesa, ela própria detentora de uma parte significativa da dívida. A arma seguinte é a do reescalonamento de dívida legítima mediante negociação com os credores. Trata-se de uma solução nacional e pública, e não de um resgate imposto. Certamente, esta solução desencadeia chantagens sobre a continuidade portuguesa no euro e ameaças de bloqueio de crédito à banca pública. Quanto à questão do euro, é certo que o país pode ser expulso por castigo de pecado soberanista mas convém não perder de vista que a Alemanha tem muito a perder se houver saídas de estados da moeda comum. Aliás, como se viu pelo cola-tudo da Alemanha, com perdão de dívida parcial, inclusivamente, para não perder a Grécia do cabaz do euro. Uma posição de firmeza na reestruturação da dívida ganha, neste contexto, ainda mais força. Quanto ao bloqueio de créditos, um ataque de tipo fecha-a-torneira só pode ser temporário, embora brutal. Um ataque desses é prejudicial a prazo aos próprios mercados que esperam realizar capital, mesmo sujeitos a menores lucros. Por outro lado, essa iniciativa de nacionalização da banca e reestruturação da dívida permitiria a Portugal uma reestruturação económica em termos de investimento em escala e melhoraria até, a prazo, as garantias de pagamentos internacionais. Como se percebe, essa rutura obriga à existência nacional de um governo refratário aos critérios dos tratados europeus e a um choque com Bruxelas/Frankfurt, pelo menos.

Em qualquer caso, nós devemos defender o que deve ser feito, com uma política de classe, face ao sofrimento popular, e não aquilo que se julga ser possível com um governo indefinível, tipo assim-assim de perdão parcial, aliás altamente improvável. A dívida é a escravidão do contratado.

5 - A política de uma esquerda não desistente deve ter uma resposta para a dívida, não só porque é uma conta objetiva a pagamento mas também porque encobre a demagogia do sacrifício para as massas. Mas como se percebe ainda melhor no pós-troika, a alternativa ao governo existente não tem como primeira bandeira a solução da dívida impagável, que nos estrangula em décadas, mas uma alternativa ao confisco dos direitos sociais.

A devolução dos direitos sociais é a prioridade da política. Quando se exigem direitos sociais compreendem-se aí direitos individuais e coletivos, quer sejam económicos, quer culturais, quer sexuais, quer de género. Justamente, não queremos financiar o futuro estado social com dívida. Por isso, uma reforma fiscal radical é a marca anticapitalista desse avanço. Ou o capital é que paga a parte de leão do Estado Social ou não há Estado Social. Não haja dúvidas, sob as atuais condições, a pretexto da dívida, caminhamos para uma competitividade asiática que não reconhece nada que se assemelhe a Estado Social.

A viragem que queremos não exclui negociações e lutas no campo europeu, mas a decisão política soberana e as medidas a tomar são fundamentalmente internas. Dependem dos trabalhadores e das trabalhadoras, do povo da República portuguesa. A recuperação social do saque troikista é o nosso programa imediato. E aqui fundimos, necessariamente de modos diferentes, a ação do Bloco de Esquerda com as várias agendas dos movimentos sociais todas apontadas à recuperação de direitos. Convém não laborar em equívocos: esta é uma fase de resistência, eventualmente com um outro elemento de contraofensiva. O desdém pela resistência em nome de conquistas novas, nem alcança estas nem defende as anteriores. Habitualmente, serve apenas para dissimular perda de direitos a pretexto de alguma "flexibilização". A necessidade de resistência prende-se com a ofensiva neoconservadora a conquistas anteriores. O crescente ataque aos direitos e opções individuais enfraquecem igualmente o coletivo, nomeadamente os ataques aos direitos de género e a discriminação da orientação sexual. A perseguição de minorias, a xenofobia e racismo são-nos agora apresentados com uma nova insistência. Enquanto o populismo e aceitação dos partidos de extrema-direita crescem pelo discurso camuflado dos “valores”, também os partidos de centro-direita encontraram aqui uma base comum. Esta é uma alteração de qualidade em relação ao mapa da da direita do pós-Guerra, o que merece da esquerda uma profunda reflexão porque nada ficou como dantes. Uma maioria social resistente é a força-motriz necessária para reverter este ciclo conservador.

6 - Os partidos no Parlamento nacional estão claramente identificados. Não existe nesta altura nenhuma reorganização de formações, ou alteração das posições tradicionais que cada partido assume, PSD, PS, CDS, o arco do atraso e da dependência nada fará para contrariar as políticas conservadoras da austeridade. A sua assinatura do memorando com a troika é uma certidão narrativa de nascimento desse bloco, quaisquer que fossem as políticas que antes fizeram. O apoio destes partidos ao Tratado Orçamental que condensa o austeritarismo, denuncia o compromisso e a colaboração.

PSD e PS, tal como o CDS, podem ter críticas à aplicação de um programa antissocial, mas aceitam-no. Na Europa, todos os partidos conservadores, da família de PSD/CDS, o fazem. Também todos os PS’s europeus o estão a fazer, da França a Itália, da Alemanha à Holanda, entre outros. O PS português não é exceção. A pressão para uma integração mais federal com a união bancária e a harmonização fiscal só agravam a falência do Estado Social impedindo a ampliação da banca pública e impostos sobre o capital.

No cenário europeu, encontramos contestação forte pela direita ultrarreacionária e nacionalista e pela esquerda radical. No plano doméstico, por ora, a contestação parlamentar pertence à esquerda, PCP e Bloco de Esquerda. E esse é o arco do protesto. O arco do protesto é também um arco de alternativa, ainda minoritário, mas única hipótese para as esperanças populares. Não se trata de articular agora coligações eleitorais mas de ampliar espaço político com os descontentes do PS, do PSD, do CDS. Trata-se de fixar proximidades com setores populares que se despartidarizaram, em sinal de luto pelos partidos do capitalismo e da ordem. Trata-se de mobilizar abstencionistas, pelo pão e pela liberdade, e em particular, jovens suscetíveis à publicidade anarquizante contra a política. A aliança de progresso de que o país carece sairá certamente desse arco parlamentar, embora hoje ainda insuficiente. Nenhuma das suas componentes está a mais, faltam ainda componentes que a luta social trará para uma frente que possa jogar papel no poder político.

Convém, então não adulterar o quadro político com designações que o confundam. Quando se fala de direita e esquerda a referência tem ainda a ver com o 25 de Abril. Por exemplo, com a social-democracia original do PS. Com o comunismo do PCP. Com o revolucionarismo das forças que compuseram o Bloco. Embora todas as forças tenham evoluído, com diferenças expostas, é forçoso reconhecer que o PS oficial se afastou do campo da esquerda. Os valores de esquerda no PS são razão de cidadãos e de uma grande massa de votantes, não propriamente da orientação do partido. Mesmo havendo elementos do PS que ainda se identifiquem com a social-democracia tal facto, muito pouco expressivo, não altera a natureza liberal e centrista do partido. Quando a direita é cada vez mais conservadora, o PS fica só no espaço liberal, nem por isso de esquerda.    Propõe-se o PS combater as desigualdades ou, pelo contrário, desenvolver o modelo privatizador, como o fez? Tivemos experiências governativas do PS qb para saber os limites da sua gestão capitalista. E agora pior, face à pressão germânica do governo CDU/CSU/SPD, Bloco Central, na administração imperialista da União Europeia. Incumbe-nos falar do arco da alternativa, não de "unidades de esquerda" que podem querer dizer coisas diferentes, e não clarificam com quem queremos juntar forças!

7- Devemos ao movimento sindical-CGTP, a muitas comissões de trabalhadores, a sindicatos independentes, a muitos movimentos sociais, a resistência dos trabalhadores à perda de direitos produzida pela marcha dos governos PSD e PS. É neles que confiamos, em primeira mão, para a continuidade da resistência à atual onda conservadora da burguesia e dos seus agentes políticos.

Mais do que o saldo desse combate, tão prolongado, é importante valorizar as décadas de organização no local de trabalho, a persistência do conflito em tribunal, o empenho na defesa de postos de trabalho contra a evaporação de grande parte do sistema produtivo. Essa é a educação de classe indispensável para qualquer luta social. Reconhecemos ter tido muitos êxitos pontuais, a vitória das 40 horas de trabalho semanal, melhorias nas condições de trabalho. Contudo, o saldo geral é de retrocesso desde os anos 80, de precarização da força de trabalho, de fragilização contratual de recuo da legislação laboral e de apoios sociais. Esse é o débito do avanço burguês e das dificuldades da luta onde o medo social tem encurtado as respostas possíveis. Porém, as dificuldades não têm a ver com o caráter das organizações, pese a necessidade de estas desenvolverem a democracia de base.

Note-se que o surgimento pontual, episódico, de movimentos espontâneos de grande massa em protesto contra medidas de austeridade, não retira papel a organizações permanentes da luta de classes, antes complementa e potencia a oposição de massas. O movimento de resistência tem tido essa diversidade de atuação. A derrota social é sobretudo política, não tem derivado de confrontações patronais diretas e tem sido imposta pelos governos capitalistas. O contra-ataque não se resolve só no âmbito social. Os altos e baixos do movimento não estão desligados das conjunturas políticas. Expetativas ilusórias amarram e desgastam a capacidade de luta. Por isso, a politização do movimento sindical e a sua abertura à pluralidade das resistências ajudará a libertar a luta social das ilusões no centro, as ilusões na alternância do mais do mesmo.

Há também exigências novas. Uma delas é o engajamento de jovens ativistas nas lutas sociais. Esses jovens podem produzir o salto de qualidade para novas vagas de luta mais agudas e radicais. Essa é a tarefa mais difícil de todas com a precaridade e perseguição que rodeiam a juventude trabalhadora. Dificuldade acrescida pela desvirtuação que se fez entretanto do conceito de classe. Aos jovens a quem o sucesso tinha sido prometido, assente no mérito e no triunfo individual, é agora apresentado um mundo laboral condicionado pelo medo e pela sobrevivência económica. A capacidade de organização e ativismo dos jovens nas lutas pelos direitos coletivos dos trabalhadores é essencial para recuperar a consciência de classe. E essa tarefa necessita de convicções políticas, não meramente de formação e exemplo sindical. Esse é o campo que decide vanguardas. E é um campo largamente em aberto.

Outra exigência de grande acuidade: resposta sindical europeia. O défice europeu de luta teve ultimamente alguns sinais encorajadores ao coincidirem várias greves gerais de vários países, coisa nova na história do movimento operário. Mas a estreiteza nacional tem preponderado, inibindo uma escala suficiente de combate à UE. A plataforma necessária a constituir não pode ignorar a CES (Confederação Europeia de Sindicatos) mas tem de ser um movimento para além da negociação clássica institucional, como tribuna de denúncia política e um centro de convergência de ação de classe dos trabalhadores das várias nacionalidades e imigrantes. Essa ação deve também aliar lutas feministas, LGBT, ambientais, civilistas, antiguerra.

Falta ainda um sujeito anti-UE que contagie a esquerda de representação política e repudie a extrema-direita: o mundo do trabalho. Houve ensaios neste caminho. Mais insistência e ligação das estradas físicas às estradas eletrónicas traz o conteúdo do internacionalismo que pode dar um contributo chave a uma crise política imposta pelos de baixo, no limiar de qualquer viragem socialista.

8- O final da guerra fria, com a implosão da URSS, fez emergir um imperialismo à escala global. Esse poder protetor dos mercados e detentor de hegemonia associa, não sem contradições, os estados capitalistas mais poderosos. Não sem contradições, como se vê pela crise da Ucrânia, onde saltou a faísca entre os EUA e a Rússia, meses depois de os mesmos terem fechado um acordo que evitou a invasão da NATO na Síria.

As transnacionais, empresas do oligopólio, a informação instantânea das bolsas financeiras e mercadorias, o gigantismo do transporte comercial empurram o capitalismo para entendimentos de segurança global, localizando as suas guerras em várias regiões pelo controlo de matérias-primas e domínio das áreas de charneira do planeta. Os EUA permanecem a potência-chefe, liderando a NATO, como legião militar de intervenção geral, com parcerias várias. A emissão da moeda-padrão, o dólar, e o potencial económico, embora declinante, titulam a potência americana como líder do imperialismo.

As convergências cruzadas com a China, a Rússia, e outros grandes países como o Brasil, Índia, África do Sul, Indonésia têm imprimido a dinâmica G, com conferências sucessivas de G8 a G20. A recente declaração comum entre Obama e Hollande, assumindo a partilha da leadership mundial, mostra que não existe qualquer diferença significativa entre as correntes políticas de que proveem.

O chamado "consenso de Washington" permitiu uma agenda neoliberal triunfante em todo o mundo, com a desregulação dos mercados, até que rebentou a crise financeira de Wall Street em 2008.A retoma do controlo estatal dos mercados financeiros e bancários tem sido acompanhada da avançada da direita mais conservadora, clamando por valores conservadores na economia, e mesmo setores reacionários têm vindo a medrar. Os Tea Parties tendem a marcar espaço nos EUA e na Europa. Dos vivas aos mercados passamos aos discursos de poder excludentes de vários setores de pobres e elogiosos da austeridade, reforçando o autoritarismo de Estado.

Muitos tendem a comparar a atual situação europeia e a sua relação transatlântica com os anos 30 do século passado. As comparações são perigosas porque imensos fatores diferem. Contudo, notam-se semelhanças no ascenso dos conservadores ou no recrudescimento dos nacionalismos. A ideia de replicar frentes populares contra a reação é em si mesma meritória mas sem equívocos, isso não se faz com liberais de tipo Hollande. O filme das frentes populares também não é o mesmo dos anos 30. O PS da frente popular de 1936 em França trouxe grande conquistas aos trabalhadores, por exemplo, férias pagas. Hoje, não existe esse tipo de PS.

9- A China provoca um grande dano à luta pelo socialismo. Toda a burguesia mundial aponta para a China como exemplo do comunismo para horror de todos os trabalhadores que já conquistaram direitos no seu trabalho, incluindo a greve e a livre associação. E a China comporta-se na cena internacional como uma vulgar potência capitalista mas também a nível interno onde prospera um poderoso capitalismo privado.

O Comité Central do Partido Comunista Chinês alberga detentores de grandes fortunas e o Estado projeta para o exterior vários dos maiores multibilionários do mundo. Depois de vários equívocos muito nefastos acerca do progressismo da China nos anos 60 e 70 do século XX, é forçoso assinalar que o papel da potência chinesa é desagregadora de qualquer luta anti-imperialista. Essa pode ser a ilusão de alguns governos populares na América Latina, mas não tem sustentação no seu conflito com os ianques.

A China é de há muito um divisor das esquerdas, a troça do socialismo, e o principal aliado dos EUA na blindagem do sistema financeiro internacional. Qualquer apoio de esquerda à China cola essa atitude à ditadura que comanda os destinos de Pequim, sistema não aceitável em qualquer continente. Socialismo sem democracia degenera em capitalismo autoritário. Essa linha de clarificação só pode resgatar o socialismo de terríveis e reais caricaturas.

Documento aprovado na Assembleia Fundadora, realizada em Lisboa a 29 de março de 2014. 

Fotografia: Macha de Indignação 21 de janeiro 2012/Paulete Matos