tese proposta à VII Assembleia da Esquerda Alternativa - 17 de março de 2018
I - Austeridade, doença crónica do capitalismo
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O bicentenário do nascimento de Karl Marx comemora-se num período ainda marcado pelos escombros da primeira crise global do capitalismo. A crise financeira de 2007/2008 é mais uma prova da genética do capitalismo identificada por Marx: as crises económicas são inerentes a este sistema económico. Dez anos volvidos sobre crise financeira, o sistema capitalista ainda anda à procura da saída de emergência.
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Desde 2008 que a fuga para a frente capitalista tem duas marcas essenciais: 1) planos de austeridade para terraplanar direitos e conquistas sociais e 2) políticas monetárias expansionistas que se traduzem numa baixa generalizada das taxas de juros. O prémio da crise continuou a sair ao infrator, com as bolsas financeiras a registar largos ganhos nos últimos anos, beneficiando das políticas dos bancos centrais e das bolhas especulativas. A economia de casino, que esteve prestes a ruir, reinventou-se como castelo de cartas à custa de um aumento global de endividamento.
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Na última década, o comboio da desigualdade aumentou a sua velocidade. Mais de 80% da riqueza criada no ano de 2017 foi parar às mãos dos 1% mais ricos. Neste momento, 42 pessoas detêm tanto dinheiro como metade da população mundial (3700 milhões de pessoas). A crise foi um bom negócio para a concentração de capital, feita à custa de um empobrecimento massivo.
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O trilho da desigualdade cimenta-se no reforço do autoritarismo, resposta musculada das burguesias cada vez mais alinhadas por uma ideologia conservadora e nacionalista, passando os neoliberais para o banco de trás da história. Donald Trump é a figura de proa deste novo tempo, marcado pela instabilidade da ameaça da guerra, virando a página para uma nova forma de afirmação hegemónica do imperialismo norte-americano. Este cowboy despótico caracteriza-se por constantes negações da realidade e da evidência científica, como é o caso da rejeição das alterações climáticas, ataques à liberdade de imprensa e aos mais elementares direitos democráticos. A sua visão de sociedade assenta numa clara divisão social, misógina, racista e xenófoba, para onde procura direccionar a raiva social fruto da desigualdade socioeconómica e da globalização capitalista. O imperialismo norte-americano é hoje mais feroz e assanhado, procurando impor a legitimidade internacional através da ameaça e chantagem permanentes.
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A NATO mantém o papel de braço armado do imperialismo, apesar da desvalorização retórica que Donald Trump faz sobre o seu papel. A ligação à Europa, que a NATO representa historicamente, deixou de ser uma prioridade para os norte-americanos, exigindo que os países deste continente invistam na sua militarização. A reação europeia, de iniciar um processo de criação de um exército comum, engloba uma vertente de protecionismo da indústria militar do centro da Europa que não pretende romper com a NATO. A escolha de Trump é a de ter a maior flexibilidade possível na sua ação militar, não aceitando ficar refém da NATO ou da ONU, gerindo a situação em cada momento com as parcerias conjunturais existentes.
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O Médio Oriente está hoje transformado no principal teatro de guerra entre potências mundiais e os seus aliados regionais. No pano de fundo, e na ressaca das desastrosas intervenções militares dos EUA no Afeganistão e no Iraque, está o controlo de importantes rotas comerciais, de posições territoriais geoestratégicas e dos recursos naturais, como o petróleo e o gás, apesar dos esforços da propaganda imperial em justificar a beligerância com a velha música da exportação da “democracia ocidental” e do alegado combate ao “terrorismo islâmico”. A política da sangrenta guerra permanente não só vítima dezenas de milhares como expulsa milhões de pessoas dos seus países, como é o caso na Síria ou no Iémen. A tenebrosa contradição deste ataque aos povos é que os governos ocidentais que fazem das bombas a sua política de eleição para a região são os mesmos que, nos seus respetivos países, erguem muros contra os refugiados.
II - A fina flor do fatalismo
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A União Europeia continua o seu processo de desagregação, nas vésperas da consumação do Brexit. A UE está longe de ser o projeto de cooperação e solidariedade propagandeado. Os tratados europeus são as camisas de força do Estado Social e dos direitos dos trabalhadores, amarrando os países à submissão da vontade do diretório. A experiência grega ensina que nem piedade se conquista com a capitulação, sendo a única alternativa de progresso o confronto com os opressores. Os interesses dos trabalhadores e o reforço da democracia exigem essa insubmissão, rejeitando quaisquer ultimatos.
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O sinais de desagregação da União Europeia iniciaram-se antes do Brexit: a crise dos refugiados e o processo grego já tinham dado esse mote. A degradação consentida das democracias a leste, com a Hungria e Polónia a partilharem a batuta do grupo de Visegrado e a sua desobediência às regras do Estado de Direito, são sintomas do aprofundamento deste processo. A crise financeira, que espreita nas bolhas especulativas que fizeram tremer os mercados, pode espoletar novas fissuras num edifício europeu com fundações cada vez mais descalças.
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As propostas de refundação da União Europeia surgem em versões cada vez mais autoritárias, centralistas e antidemocráticas. O diretório Mekron está a afunilar a União, colocando na calha uma proposta para a sua divisão formal entre países ricos e pobres. É a divisão social conservadora aplicada à organização da estrutura europeia. A recém criada Cooperação Estruturada Permanente, para as áreas da segurança e da defesa, é o pilar militarista do novo projeto comunitário e a primeira etapa para a criação de um exército europeu. O objetivo político é o do alargamento da capacidade de intervenção do imperialismo alemão, federador dos interesses das elites francesa, italiana e espanhola. O propósito económico é retirar investimento comunitário de áreas essenciais como a coesão ou os Fundos Estruturais, para o direcionar para a poderosa indústria militar europeia.
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A burguesia vê no processo de desagregação europeu a derradeira tentativa de implementar um controlo sobre as democracias há muito sonhado, mas nunca concretizado. O roteiro burguês para o futuro da União Europeia chefiado por Merkel e Macron caracteriza-se por novas ameaças de intromissão na soberania orçamental dos países da zona euro, concentração de poderes numa Comissão Europeia mais pequena e ainda menos representativa, reforço dos poderes do Banco Central Europeu, ataque aos direitos sociais e serviços públicos e aprofundamento do dumping fiscal, com menos impostos para os mais ricos. As crises de governabilidade ao centro agudizam e somam-se na Europa, esvaziado cada vez mais este espaço de sentido político real. O esgotamento eleitoral dos partidos tradicionais é notório, de Espanha à Alemanha, passando pela França. As burguesias têm-se socorrido de blocos centrais e das ditas “frentes anti-extremistas”, mas os resultados práticos desastrosos só têm confirmado a fragilidade dessa opção. A Itália, com eleições de grande confrontação, é o país que se segue neste filme.
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O processo de esvaziamento do centro tem arrastado como principais vítimas os partidos da social-democracia europeia. Os sociais-democratas participaram ativamente na construção e aplicação da estratégia austeritária europeia, orgulhosamente cooptados para posições chave neste processo. A erosão do centro deixa-os, agora, em pânico com o fantasma da pasokização. Esta constatação levou a algumas tentativas para recuperar a identidade perdida, do que foi exemplo Schulz e a recente campanha eleitoral. Contudo, são apenas operações de fachada: este processo alemão ficará na história como mais um exemplo da capitulação da social-democracia ao poder: as promessas de Schulz de oposição a Merkel ruíram perante a celeridade com que aceitou o lugar de ministro dos Negócios Estrangeiros. A rebelião dentro do SPD perante o oportunismo de Schulz acompanha o descontentamento social com que o ultranacionalismo vai celebrando avanços. Os elogios da social-democracia europeia à experiência portuguesa são filhos do mesmo pensamento: procurar estancar a perda eleitoral generalizada, para continuar a garantir os lugares à mesa do poder do capital.
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O povo português não pode esperar apoios da social-democracia europeia para defender os seus interesses. A ditadura dos tratados europeus é a lei que seguem, razão pela qual António Costa e o governo português continuam reféns de Bruxelas e submissos ao tratado orçamental. As promessas, sempre realizadas e adiadas, de discutir a dívida pública à escala europeia são sinal de nada haver a esperar da social-democracia.
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As forças progressistas à escala europeia fazem o seu caminho para enfrentar a desintegração europeia. Os partidos de esquerda, dominados pela realidade de cada país, não conseguiram dar ainda passos conjuntos para a articulação de estratégias comuns, ou sequer avançar um sujeito político autónomo face às correntes políticas maioritárias e dominantes na UE. Urge dar um salto de gigante para que a esquerda europeia esteja à altura desse desafio histórico que está à nossa frente: aproveitar o esvaziamento dos partidos sociais-democratas para se reforçarem com enormes massas desiludidas dessa área, desejavelmente nas próximas eleições europeias de 2019. Infelizmente, em vários países não vinga nas esquerdas esta perspetiva. Essa menoridade estratégica é bem evidente no Partido da Esquerda Europeia.
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Nas próximas eleições europeias, o Bloco deve apresentar-se com listas próprias, articulando a sua ação com outros partidos de esquerda da Europa. Mas, não devemos seguir o caminho de submissão à atual construção europeia e adotar a ideia de apoiar eventuais candidatos à Comissão Europeia. Esse caminho, além de contribuir para a normalização de uma arquitetura europeia autoritária e antidemocrática, contribuiria para aumentar divisões entre partidos de esquerda, num momento em que é essencial juntar forças.
III - A meio da ponte
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O crescimento da economia portuguesa mostra o efeito positivo da política de recuperação de rendimentos, que estimulou e dinamizou a procura interna. A primeira conclusão óbvia é que o aprofundamento deste caminho de distribuição de riqueza terá resultados económicos ainda mais positivos. A segunda conclusão é que esse sucesso económico esfumou o discurso da direita, o que explica a recente alteração tática do PSD.
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António Costa diz ter conseguido combinar o cumprimento das regras do tratado orçamental com uma política progressista, que responde aos anseios dos parceiros à sua esquerda e, por outro lado, consegue meter o seu ministro das Finanças, Mário Centeno, a presidir ao eurogrupo. Nada mais falso. Em matéria de cumprimento das metas do défice, a decisão do PS, em ir mais longe do que as exigências de Bruxelas, deixou os serviços públicos entregues às garras da troika. Apesar do crescimento económico e do que isso significou para a melhoria das contas públicas, o governo minoritário do PS manteve o Serviço Nacional de Saúde subfinanciado. Apesar de o défice, em 2017, ter ficado mais de 2 000 milhões de euros abaixo do previsto, a Escola Pública ainda não se libertou da herança das políticas de austeridade.
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A política do governo não resolveu os problemas estruturais da economia portuguesa: a precariedade laboral persiste ao nível de 2015, tendo-se até agravado a rotatividade dos contratos temporários. A contratação coletiva continua ameaçada pela caducidade; a massa salarial do país está estagnada desde 2015; os setores rentistas permanecem intocados, como foi bem visível na forma como o PS defendeu a EDP no último debate orçamental; a dívida pública continua em valores proibitivos e com o governo a rejeitar qualquer reestruturação; o sistema bancário permanece um sorvedouro de recursos públicos.
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A manutenção do código do trabalho da troika é uma escolha política deste governo e um fator de tensão permanente com os partidos à sua esquerda e com as organizações dos trabalhadores. Para o reequilíbrio das relações sociais é essencial reverter as alterações à legislação laboral feitas por PSD e CDS: repor o princípio do tratamento mais favorável e garantir a continuidade das convenções coletivas; proteger os trabalhadores dos despedimentos, recuperando o valor das compensações e indemnizações por despedimento; retomar o valor do trabalho suplementar e das compensações; acabar com o abuso nos contratos a prazo e penalizar os empregadores pela rotatividade, impedindo o recurso ao trabalho temporário para funções permanentes. Mas, é preciso ir ainda mais longe no combate ao trabalho temporário e reforçar os direitos dos trabalhadores por turnos.
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Os acordos à esquerda foram essenciais para estancar a vingança da elite económica portuguesa contra as conquistas sociais e populares do 25 de Abril. Após décadas de retrocesso e de quatro anos especialmente destruidores, foi possível parar o empobrecimento e recuperar fôlego no terreno social. Constatadas as limitações que o próprio PS coloca ao progresso no país, é essencial recuperar mobilização e reivindicação social ofensiva.
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Até ao final da legislatura, onde se inclui desde já a negociação do próximo Orçamento do Estado, o Bloco de Esquerda dará prioridade ao virar definitivo da página da austeridade, com especial enfoque nas alterações à legislação laboral e na recuperação do serviços públicos, sem esquecer o combate aos setores rentistas, da energia à saúde, essencial para libertar recursos públicos para o investimento.
IV - Por um governo de esquerda, há vida para além do PS
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O Bloco de Esquerda conseguiu tirar o máximo partido dos acordos realizados à esquerda. A avaliação feita é positiva, mas não ignora as limitações colocadas pela submissão do PS às regras e imposições de Bruxelas e ao seu próprio programa liberal. A exploração e demonstração dessas limitações são essenciais para o alargamento da base social à esquerda. Ao mesmo tempo, os ativismos que surjam das mobilizações sociais e que contestem as insuficiências desta governação do PS são o alforge para novos protagonistas, fundamentais ao reforço deste campo político e social.
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A mobilização social é um elemento fundamental para melhorar a relação de forças e vencer as limitações da atual governação. O Bloco de Esquerda deverá apoiar e impulsionar todos os ativismos que confluam na defesa dos direitos sociais e dos serviços públicos. As e os ativistas do Bloco participarão nessa dinâmica, sem a pretensão de exercer controlo sobre os movimentos sociais. Para esse desafio, é preciso reforçar a criação de redes de ativistas e potenciar as já existentes.
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Em 2019, o Bloco de Esquerda vai afirmar o seu projeto próprio de governação à esquerda e apresentá-lo a eleições. Essa proposta ganha força onde o PS não a tem: políticas de desenvolvimento social, em rutura com o poder do Banco Central Europeu e desafiando as regras da União Monetária e os tratados europeus; reestruturação da dívida pública; investimento nos serviços públicos, reforçando a sua qualidade e universalidade; revisão do código do trabalho e combate à precariedade laboral; atacar o rentismo e o clientelismo, recuperando para a esfera pública a propriedade de bens estratégicos na energia, nas telecomunicações, nas infraestruturas e no ambiente.
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Este projeto de governação à esquerda precisa de um Bloco de Esquerda reforçado na sua intervenção social e política, na sua democracia e no seu pluralismo. No desenvolvimento de discurso e agenda própria do Bloco de Esquerda, a dinamização de petições e iniciativas legislativas populares constitui uma ferramenta importante. Para o mesmo objetivo contribuem também o aprofundamento do trabalho autárquico e do trabalho local, o reforço do ativismo sindical e em comissões de trabalhadores, a participação nas mobilizações sociais feministas, LGBTI+, antirracistas, de imigrantes, ecologistas. Abrindo, assim, um diálogo e uma colaboração com milhares de pessoas.
Comissão de Teses: Pedro Filipe Soares, Bruno Góis, Fabian Figueiredo, Humberto Silveira, Isabel Pires, Joana Mortágua, Luís Fazenda, e Sandra Cunha
Imagem: foto de Paulete Matos – Manif 25 de abril |Lisboa.