RACISMOPORTUGAL

Antirracismo e luta de classes - proposta de tese à VIII Assembleia da Esquerda Alternativa

 

  1. O racismo não é uma realidade criada pelo capitalismo. O capitalismo rearticulou este sistema de opressão que o precede. A escravatura da idade moderna alimentou a economia das potências marítimas europeias durante cerca de cinco séculos. Vários povos africanos foram escravizados e transportados para outros continentes a uma escala nunca antes vista. Com um plano de dividir para conquistar, as potências europeias colocavam os reinos africanos uns contra os outros. Aliavam-se a alguns, conseguindo colaboração subalterna. Mas submetiam todos, ao impor a sua dominação política, económica, cultural e religiosa. Resultando disso: antigos reinos africanos recuaram socialmente e fragmentaram-se politicamente.

     

  2. O problema do capitalismo com a escravatura não é de ordem moral. O capital começa por explorar cada unidade e cada tipo de produção a partir do estado em que o encontra. Só depois os desenvolve para métodos de organização do trabalho mais eficientes. Por isso, trabalho livre e trabalho escravo conviveram e convivem no modo de produção capitalista. As potências mais desenvolvidas economicamente, que substituíram o trabalho escravo pela mecanização e pelo trabalho assalariado, tomaram, de forma interessada, a dianteira no combate ao tráfico de pessoas escravizadas. A própria abolição do tráfico de pessoas escravizadas pelas autoridades portuguesas, primeiro no então Reino e depois nas colónias, teve duas razões fortes. A primeira eram as pressões da potência britânica. A segunda era o próprio objetivo de usar essas mesmas pessoas, primeiro através da continuidade da escravatura nas colónias, depois pelo trabalho forçado, dito contratado, para o seu projeto de exploração económica do interior de África.

 

  1. As justificações para a submissão e escravatura dos povos africanos foram procuradas e estabelecidas em revisões da doutrina religiosa, da teologia cristã. Mesmo os africanos e afrodescendentes entretanto batizados tinham nesse registo a marca da diferença “preto” à frente do nome. As estruturas sociais da consciência foram-se transformando com a transição para o modo de produção capitalista. O racismo passa a assumir a forma de “teorias científicas”. A partir da hierarquia estabelecida pelo domínio de uns povos sobre outros, as teorias racistas estabeleceram hierarquias de inteligência e beleza, identificando raças brancas, negras e orientais. Diferenças fenotípicas, antropomórficas e culturais foram elevadas à justificação do domínio de uns povos sobre outros e ao extermínio de populações inteiras, através do recurso às mais sofisticadas tecnologias da segunda Revolução Industrial.

  2. No final do século XIX, o capitalismo entrou na sua fase imperialista e exigiu a repartição de África entre as potências europeias. O continente africano foi dividido a régua e esquadro entre as potências colonizadoras, gerando um mapa que ignorava etnias, religiões e conflitos existentes entre os povos. Este será a semente de grande parte das guerras que assolam ainda hoje o continente Africano. Nesses territórios gerou-se inicialmente uma estrutura de domínio entre a sociedade dos colonos e as sociedades africanas. O avanço da dominação capitalista foi desagregando as sociedades africanas e impondo a integração forçada e subalterna destas populações numa estrutura de classes colonial. Havendo sempre camadas intermédias, um abismo racial tornava evidente a fratura social gritante dessas estruturas de classes - porta aberta para lutas de emancipação nacional marcadas pelos interesses dos explorados e oprimidos. Só no final da segunda guerra mundial, em 1945, por força dos seus próprios movimentos de libertação nacional e das pressões e interesses dos EUA e URSS, se iniciaria a primeira grande vaga da descolonização, principalmente na Ásia, mas também  nas Américas e Oceania. O imperialismo das velhas e novas potências continua a dominar de forma particularmente intensiva os povos dos novos estados.

  3. Nos países coloniais, como os EUA, a classe trabalhadora formou-se quer pelos afrodescendentes, cujos antepassados tinham sido escravizados, quer por sucessivas vagas de trabalhadores europeus, asiáticos e latinoamericanos. A hierarquização arbitrária das “raças”, que, aliás, variava de empresa para empresa e ao longo do tempo, cumpria a função de dividir trabalhadores e colocá-los em competição entre si. As racializações, processos sociopolíticos de domínio, faziam atribuir vícios e virtudes às diferentes “raças”. Os hábitos incorporados pela posição social e inserção profissional de determinados segmentos da população eram naturalizados como próprios de uma dada “raça”. Sucessivamente várias vagas vão sendo incluídas na branquitude, mantendo sempre exclusões.

  4. Trabalhadores considerados brancos confundem os seus interesses com os da classe dominante devido ao chamado “privilégio branco”. Compensam a precariedade da sua posição social com a participação simbólica no mundo dos dominantes. Mas o privilégio não é só simbólico, é historicamente efetivo, com direitos liberdades e garantias legais diferenciadas, com remunerações superiores. E mesmo para além da igualdade legal conquistada, a subalternização dos “não-brancos” persiste socialmente.

  5. A identificação das políticas sociais com camadas racializadas da classe trabalhadora tem sido uma arma nas mãos do capital e dos seus representantes políticos. Trabalhadores considerados brancos numa dada sociedade são, assim, mobilizados contra os seus próprios interesses. O projeto de acabar com o rendimento social de inserção, com o subsídio de desemprego, com as políticas de apoio à habitação ou com outros serviços e direitos sociais passa a contar com apoios entre os principais prejudicados pela destruição social.

  6. A política do ódio etnorracial, tal como a homo/transfobia e o machismo, tem sido levantada como bandeira dos ultras, chamem-se eles Le Pen, Trump ou Bolsonaro. Minorias étnicas, nacionais e religiosas são apontadas como inimigos externos e internos. Refugiados sírios, franceses de origem magrebina, emigrantes mexicanos, índios, quilombolas e favelados, comunidades africanas ou ciganas, os alvos mudam de nome mas são sempre o bode expiatório que garante a continuidade do poder dos dominantes.

  7. As pessoas racializadas não são todas da mesma classe. A racialização tem uma relação íntima com a estrutura de classes mas não se confunde com ela. Daí que existam movimentos e programas antirracistas liberais, sociais-democratas e socialistas. Correspondendo, assim, a diferentes interesses de fração de classe. O antirracismo liberal pode contentar-se com as garantias de igualdade formal e de tratamento perante as instituições do Estado e do mercado. O antirracismo social-democrata pode ver nas políticas de quotas etnorracias e nas políticas sociais dirigidas um fim em si mesmo. O antirracismo socialista e anticapitalista não rejeita como programa antirracista imediato as conquistas possíveis dentro do capitalismo, mas não desiste de ir à raiz da opressão etnorracial: a exploração e a opressão endémicas às sociedades de classes e o domínio de umas nações pelas outras.

  8. Na sociedade portuguesa, a discriminação etnorracial é sofrida por trabalhadores imigrantes em geral e, principalmente, os não-europeus e por cidadãos e cidadãs portugueses ciganos e afrodescendentes. Nos últimos anos, têm-se estruturado os movimentos sociais correspondentes. O movimento antirracista em torno das lutas contra a violência policial e por maior representatividade nas instituições democráticas. E o movimento dos imigrantes tem-se mobilizado principalmente pelos direitos do trabalho e pela legalização dos trabalhadores indocumentados, uma luta protagonizada principalmente por trabalhadores de origem paquistanesa, indiana e nepalesa. Ambos os movimentos se têm empenhado na luta por uma nova lei da nacionalidade que inclua na cidadania portuguesa todas as pessoas nascidas em Portugal. Estas lutas, a par das lutas feministas, têm trazido novos debates para a discussão. O conceito de interseccionalidade (entre ‘raça’, género, classe, sexualidade, capacidade física e intelectual etc.), originário da crítica do direito feita pelo feminismo negro norte-americano, tem sido mobilizado para articular as várias lutas sociais. Essa análise e linha de transformação social pode ser uma ferramenta para levar mais além o pensamento avançado pelas feministas socialistas negras, com a tríade classe, ‘raça’ e género. Um desafio ao pensamento teórico e estratégico a que a esquerda marxista precisa de saber corresponder.

 

  • Como em relação a outros movimentos sociais e às suas causas, a autonomia de agenda e organização dos movimentos antirracistas e de imigrantes fortalece o campo progressista nas luta sociais.

  • As populações racializadas, ao conterem em si setores pertencentes a diferentes classes e diversas culturalmente, são mobilizáveis para diferentes projetos políticos, fruto dos seus interesses e convicções.

  • Para uma maior mobilização e unidade da classe trabalhadora em Portugal, exige-se à esquerda que, por um lado, corresponda aos interesses gerais da causa antirracista. Por outro lado, exige-se à esquerda uma maior capacidade de corresponder aos interesses específicos das camadas imigrantes, afrodescendentes, ciganas e de outras minorias sociais que pertencem à classe trabalhadora do país.

  • Um maior trabalho junto das populações empurradas para a periferia dos grandes centros urbanos é parte deste caminho. Só esse trabalho abre portas a uma maior participação militante destas populações politicamente sub-representadas. Essa linha de ação fortalecerá a esquerda e ajudará a levantar as bandeiras da solidariedade que fazem da causa das minorias exploradas e oprimidas - a causa comum de uma maioria social transformadora.

Comissão de teses: Pedro Filipe Soares, Bruno Góis, Fabian Figueiredo, Humberto Silveira, Isabel Pires, Joana Mortágua, Luís Fazenda, Mariana Aiveca, e Sandra Cunha.