A luta de classes não conhece quarentena 1

Documento político da direção da Esquerda Alternativa - 9 de abril de 2020

 

  1. A COVID19 tornou-se global, transformando-se na primeira pandemia do mundo globalizado. Com um ritmo de contágio vertiginoso, o vírus propagou-se rapidamente entre povos e países, levando muitos serviços de saúde à rutura. A pandemia caracteriza-se por uma taxa de letalidade elevada entre os grupos de risco, um longo período de recuperação para os casos mais graves e a necessidade alargada de recurso a formas de ventilação mecânica.

  2. A pandemia expôs as fragilidades de muitos serviços de saúde, reféns de décadas de privatizações e investimento agónico. Apesar dessas debilidades, os serviços públicos de saúde (o SNS no caso português) foram determinantes na resposta à pandemia, enquanto os privados fechavam portas ou deixavam à entrada quem não tinha seguro ou recursos para pagar. O mercado mostrou a sua essência.

  3. A divisão internacional do trabalho ficou exposta nas consequências da pandemia, com cadeias de fornecimento de material básico interrompidas pela suspensão da produção na China e outros países asiáticos, e consequências na dinâmica global da acumulação de capital. O capitalismo em crise sofre nova machadada, a qual teremos de acompanhar com atenção pois poderá ditar mudanças nas relações de forças entre potências e criar novas instabilidades.

  4. Um dos mitos da pandemia é a ideia de que afeta todos por igual, que o vírus não escolhe classes, etnias ou cor de pele. Há uma verdade biológica nesta informação que esconde uma enorme mentira social. Por um lado, vemos em muitos países onde faltam serviços públicos de saúde que os efeitos da pandemia são potenciados pelas desigualdades e chegam mais violentamente aos mais desfavorecidos, muitos dos quais fazem parte da força de trabalho que garante alguns serviços mínimos da economia. Por outro lado, quem perdeu o pouco rendimento que tinha, quem ficou sem emprego ou entrou em lay off, quem vê as contas a acumular-se e a falta de meios para as pagar, quem já vivia em condições precárias, tem da quarentena a visão bem menos romanceada do que aquelas que vemos abundantemente em redes sociais.

  5. A pandemia atingiu Portugal num momento em que já era possível aprender com a experiência de outros países. As imagens dos hospitais italianos ou espanhóis sensibilizaram a larga maioria da população, adotando generalizadamente normas de isolamento social e redução de movimentos. Até ao presente, a evolução da pandemia no nosso país parece contida, mas ainda em números que não permitem abrandamento das normas de isolamento social.

  6. A Declaração do Estado de Emergência de 18 de março decorreu de iniciativa política do Presidente da República, apesar de tal não ter sido requerido pelo Governo. O cumprimento geral das normas de isolamento social dispensavam esta Declaração, contudo a sua existência reforçou a garantia pública à limitação de circulação de pessoas e ao confinamento obrigatório, agilizando a possibilidade de controlo de preços e requisição de recursos privados.

  7. Nascida da pressão da direita, a declaração frustrou várias pretensões da onda securitária como a possibilidade de atribuição às Forças Armadas de um papel de segurança pública ou o agravamento de sanções por crime de desobediência. Manteve, no entanto, a suspensão parcelar do direito à greve e do direito de resistência, limitações absolutamente despropositadas e desnecessárias das liberdades públicas, uma provocação gratuita e um sinal da hostilidade presidencial ao movimento sindical. A realidade demonstrou da sua completa superficialidade nesta matéria.

  8. A situação pandémica ou o Estado de Emergência não suspenderam a luta de classes ou o confronto político, antes trouxeram novas contradições a explorar e opressões a combater. A proibição dos despedimentos foi a primeira proposta avançada pelo Bloco de Esquerda, chamando a atenção para a destruição de emprego que já está em curso, particularmente afetando os trabalhadores precários. A pandemia não esconde uma crise económica brutal a decorrer.

  9. A burguesia está a utilizar a crise para enormes atropelos aos direitos dos trabalhadores. Os relatos chegam de todo o país. A referenciação desses abusos e a sua divulgação são armas importantes para a resistência e o combate dos trabalhadores à exploração e para a identificação de classe, particularmente importantes num momento em que as lutas dos trabalhadores estão invisibilizadas nos meios de comunicação social burgueses. O Governo, que no passado manteve a legislação laboral da troika, respondeu ao capital com uma legislação facilitada para lay off, reduzindo os rendimentos dos trabalhadores e colocando a Segurança Social a pagar uma parte considerável das responsabilidades patronais. Promete, em troca, o reforço da Autoridade para as Condições do Trabalho, que se percebe manifestamente insuficiente e um mero paliativo para os direitos que agonizam. As escolhas de classe também surgem camufladas de resposta à crise, é necessário batalhar ainda mais pelos direitos dos trabalhadores.

  10. A crise não pode significar a lei da selva nas empresas, a luta dos trabalhadores tem de ser incentivada e organizada. Como sabemos, o capital procura sempre vingar-se das crises aprofundando a exploração e diminuindo os rendimentos do trabalho. A resposta solidária que o país deu na resposta à crise pandémica é a mesma que temos de construir para uma maioria social na defesa dos direitos do trabalho, capaz de defender os rendimentos e o emprego.

  11. Os problemas adiados do país virão assombrar-nos no presente. O prenúncio de uma recessão superior a 8% é avassalador. As enormes desigualdades e a pobreza, a precariedade laboral, a dependência do turismo como o principal fator de desenvolvimento do país, a elevada dívida pública a que faltou a reestruturação, o diminuto investimento público na economia e na qualificação dos serviços públicos são os principais problemas nacionais. A crise bate à porta de um país descapitalizado que ainda não estava recuperado da austeridade da troika. Mas, talvez a maior conclusão, seja a de um país preso a uma União Europeia que ainda não resolveu as suas contradições e dependente de uma política monetária ditada pelo eixo franco-alemão. O confronto nacional é também europeu.

  12. A aposta do Governo português foi a de uma resposta europeia capaz de socorrer o país. Essa expetativa saiu gorada. O pacote apresentado por Mário Centeno, presidente do Eurogrupo, é bem diferente do que pedia António Costa. Mais uma vez, a União Europeia falha num momento fundamental. A história parece desenrolar-se com uma nova submissão do governo nacional, apesar da retórica inflamada. A negação de uma resposta monetarista ou, até, de uns reformistas eurobonds, mostra como a falta de solidariedade não é uma questão de defeito, é mesmo o feitio desta construção europeia. Debaixo do verniz, é a sua verdadeira natureza. A evolução da crise levará à enorme tarefa de construir uma maioria social para desafiar as regras europeias e defender o país de políticas de austeridade mais ou menos camufladas.