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Documento político proposto pelo secretariado da Direção da Esquerda Alternativa à III Assembleia da Esquerda Alternativa.

1- As (re)voltas da crise

“Mais poderoso é o povo que supera e vence as limitações, enfrenta as terríveis condições da vida e marcha em frente, para o futuro”

- Jorge Amado


1.1- As crises são inerentes ao capitalismo. Cada crise é determinada pela forma como é superada a anterior. A crise dos inícios do século XXI só pode ser completamente entendida se enquadrada nos acontecimentos mundiais que se iniciaram nos anos 1970. Contudo, a crise, apesar de eminentemente económica, é também política.

1.2- Nos anos 1970, a burguesia mundial promoveu um concertado ataque ao contrato social do pós II Guerra Mundial. A vontade capitalista de “disciplinar o mundo do trabalho” levou ao ascenso neoliberal, à individualização das relações laborais e ao lançamento das bases da financeirização da economia – afirmação global dos offshore e novo modelo do sistema monetário internacional com o fim do padrão-ouro. A globalização serviu como legitimação deste processo e como argumento de chantagem: novos mercados trouxeram também milhões de trabalhadores sem direitos e com salários de miséria.

1.3- A saída da crise mundial nos anos 1970 passou pela redução dos rendimentos e dos direitos laborais. Enquanto em Portugal Abril resplandecia, no resto do mundo o rendimento disponível através do salário começou a ser substituído pelo acesso ao crédito, abrindo campo a novos negócios. O capital financeiro atingiu taxas de rentabilidade mais elevadas que o capital industrial. A bolha especulativa começou a ser cozinhada, até rebentar em 2007/2008. O paraíso financeiro transformou-se num pesadelo a nível global, com repercussões drásticas. Mas, mais uma vez, a culpa foi passada para outros.

1.4- Na década de 1970 inicia-se o grande ataque aos direitos democráticos. A intervenção estratégica do Estado na economia, os direitos coletivos dos trabalhadores e a garantia de um Estado Social universal e de qualidade começam a ser postos em causa. A cada crise capitalista, o aumento da exploração foi acompanhada pela compressão da soberania popular. A cada redução do papel do Estado nas suas responsabilidades sociais, aumentaram os constrangimentos ao exercício dos direitos democráticos. Uma democracia com serviços públicos fortes e modernos é uma democracia abrangente, na sua ausência, impõe-se o privatismo das desigualdades e o triunfo do dualismo social. Não há democracia sem soberania popular: a decisão de todos tem que valer mais do que as pressões de alguns. Assim, sob pena da vivência democrática se inferiorizar a uma triste caricatura da formalidade do voto em eleições, o triunfo da decisão coletiva sobre o poder de uma minoria de possidentes tem de implicar necessariamente a independência dos humores dos mercados financeiros, o que só é possível com a presença do Estado na economia e com o controlo público dos setores estratégicos.

1.5- Durante a crise financeira 2007/2008 dezenas de bancos foram resgatados com fundos públicos, à margem de qualquer consulta popular. Ninguém questionou os cidadãos se queriam desviar dinheiro dos serviços públicos essenciais para salvar o casino financeiro. As instituições europeias foram o pivot da aplicação desta brutal transferência de rendimentos do trabalho para o capital. Mas, repetindo-se a regra das crises cíclicas do capitalismo, também esta não foi ultrapassada, apenas deslocada. Neste jogo de passa culpas, os bancos atiraram as responsabilidades para as dívidas públicas. Logo a seguir, nasceram e multiplicaram-se os pacotes de austeridade contra os povos.

1.6- Muda a crise, aumenta a exploração, reduz-se a democracia. A crise das dívidas soberanas veio com a mais antidemocrática das chantagens: a inevitabilidade. Sem sequer ter passado pelo escrutínio do parlamento português, o memorando da troika foi imposto ao país, bem longe de qualquer pronuncio democrático. O Estado Social, os direitos laborais e os mecanismos de redistribuição de riqueza e de salário indireto ficaram no centro do furação pela necessidade do capital em conquistar novos mercados. A continuidade dos planos de privatizações foi no mesmo sentido. Os direitos laborais remanescentes têm vindo a ser colocados em causa com o devastador aumento do desemprego por toda a Europa, particularmente nos países da periferia. O aumento da exploração trouxe uma nova forma de legitimação política, o pensamento conservador e fascizante, que bipolariza as sociedades e cavalga os medos para conquistar as vontades: é a resposta de quem já não tem ilusões para vender, apenas pesadelos para assustar.

1.7- Após a saída da troika, o legado da austeridade é preservado por via do Tratado Orçamental. A austeridade assume-se como a nova normalidade. Após a destruição dos serviços públicos, o aumento brutal da tributação sobre o trabalho ou dos impostos planos sobre o consumo e a redução dos direitos laborais e da contratação coletiva, a chantagem é de que a nova normalidade não pode ser interrompida, sob pena de a troika voltar a aterrar na Portela. Neste debate, o PS submete-se às mesmas regras que PSD e CDS. O Tratado Orçamental, qual buraco negro de que nada escapa, é o novelo que os une. As propostas já apresentadas por um conjunto de economistas do PS demonstram essa realidade. Não é possível meter o Rossio na betesga, da mesma forma que não é possível cumprir o Tratado Orçamental e defender o Estado Social, os direitos dos trabalhadores e a devolução de tudo o que foi roubado. A cedência do PS à reposição em prestações dos cortes aos trabalhadores da administração pública é disso exemplo, a par da aceitação da manutenção da enorme carga fiscal sobre o trabalho, ou da visão que os custos do trabalho são um dos problemas centrais do país (conclusão que resulta nas várias propostas de alteração à TSU, sempre com maior insustentabilidade da Segurança Social).

1.8- É por a austeridade não ter legitimidade popular, nem ganhar por si só eleições, que tem sido reduzida a democracia e a participação dos povos nas decisões. Não é um acaso, mas sim o reforço de uma tendência já visível ao longo das últimas décadas. É a forma do capital manter a sua dominação política. Isso explica o autoritarismo crescente na Europa, que se tornou no método mais eficaz de controlo dos milhões a quem é negado emprego e salário com direitos. Mas é também uma das exigências a que temos de responder. A recuperação para o debate democrático e para a participação cidadã dos milhões de pessoas que se têm afastado é uma tarefa primordial da esquerda. É possível uma democracia plena, onde os poderes obscuros da finança e dos negócios não tenham uma via verde de acesso às decisões fundamentais. Há alternativa: recuperação dos direitos sociais e laborais, capacitação dos cidadãos nos processos de decisão públicos, construção de um Estado Social forte que seja garante da igualdade e da solidariedade e presença pública nos setores fundamentais da economia.

2- Disputar a democracia: deixem o povo decidir!

“Há outro mundo na barriga deste, esperando. Que é um mundo diferente. Diferente e de parto difícil. Não nasce facilmente. Mas com certeza pulsa no mundo em que estamos.”

- Eduardo Galeano

2.1- O Syriza deu um novo alento aos povos da Europa. O povo grego tomou o destino nas mãos e rompeu com a chantagem da austeridade e da finança, elegendo um governo abertamente anti-austeridade e com um programa de reconstrução da economia e dos direitos sociais. A uma Europa que dizia que só havia um caminho – o da austeridade e do sacrifício dos povos –, a Grécia respondeu: ‘Por esse caminho não queremos ir mais’. Foi um momento fundador, mas com inegáveis dificuldades ainda por ultrapassar.

2.2 - Os restantes governos europeus (conservadores, liberais ou da internacional socialista) uniram-se contra o governo grego, procurando fazer dele um exemplo negativo para o futuro. Querem revogar nas instâncias europeias o mandato popular dado ao Syriza e desacreditar todos os partidos que nos diferentes países defendem uma alternativa. Para isso entraram num jogo de chantagem e de garrote financeiro, pressionando o governo grego para a escolha entre austeridade ou bancarrota.

2.3- O Bloco de Esquerda sempre foi solidário com o Syriza e não poderá ser de outra forma, mesmo com todas as dificuldades que existirão. A transformação na Europa ainda está no início, a onda tem de crescer e alastrar a outros países. É isso que vemos a acontecer em Espanha ou na Irlanda, e é com essa força que temos de a construir em Portugal. O próximo ciclo eleitoral é incontornável para este objetivo.

2.4- O debate nacional será também influenciado pelos acontecimentos que possam ter lugar na Grécia. Ao longo dos próximos meses, o governo grego terá de encontrar formas de financiamento e de responder à enorme chantagem das instâncias europeias, ao mesmo tempo que necessita de manter a sintonia com o sentimento da população. O governo e o povo gregos saberão tomar as decisões que lhes couberem, e devemos respeitar essas decisões sem as mimetizar para o caso português. Mais do que as questões nacionais gregas, o nosso foco deve ser a atuação da Grécia enquanto membro da União Europeia, bem como a atuação das instâncias europeias e dos restantes governos europeus.

2.5- O debate sobre a construção europeia e da forma como ela se coloca perante os povos é importante. Várias vezes este debate tem sido reduzido a matérias monetárias, mas é necessário irmos além dessas questões, caso contrário estaremos a falhar o centro da discussão. O Bloco de Esquerda tem afirmado que a construção europeia é profundamente anti-democrática e concretizada contra os povos. A realidade deu-nos razão nestas críticas. Os Tratados fundadores da União Europeia foram sempre aprovados nas costas dos povos e o resultado é a construção de um edifício tecnocrático, sem legitimidade democrática e com um poder crescente. Por isso mesmo, o BE tem afirmado pretender a desvinculação de Portugal do Tratado Orçamental e enterrar o Tratado de Lisboa. Estes são os passos primordiais para resgatar a Europa da austeridade e para a construção de uma convergência das esquerdas ao nível europeu. É esse o desafio.

2.6- O combate europeu não se faz com a cartilha do soberanismo, mas sim com uma perspetiva europeísta da democracia dos povos contra a oligarquia europeia. Não desistimos dessa aliança para a transformação social. Por isso é que focar o debate europeu na questão monetária significa desviar o centro do debate e reduzir a proposta política. Com o reforço da esquerda na Europa, inclusivamente na península ibérica, está à mostra que devemos ter as janelas abertas a esta brisa transformadora e aí ganhar forças para derrotar a construção europeia da austeridade. A questão monetária não é, contudo, despicienda e não poderemos tolerar nenhuma austeridade como contrapartida de uma zona monetária - a austeridade pode ter muitas faces e o facto é que não podemos aceitar nenhuma delas.

2.7- O referendo ao Tratado Orçamental é uma ferramenta política essencial para a defesa dos direitos dos povos. Com esta proposta, defendemos a democracia que lhes foi negada, levamos a austeridade a um plesbicito popular e confrontamos todos aqueles que se submeteram, com este tratado, à ditadura da finança e se comprometeram pela destruição do Estado Social. A construção europeia atual está baseada na negação da escolha democrática e na legitimação da inevitabilidade da austeridade. A elite nega a participação dos cidadãos porque tem medo. A única coisa que pode amedrontar essa elite é precisamente a participação dos povos e é essa a força do referendo ao Tratado Orçamental.

2.8- O ciclo eleitoral que se aproxima será de enorme exigência para a esquerda. A dramatização do cenário político para a imposição da alternância sem alternativa está já a ocorrer e tem como agente principal o Presidente da República. Cavaco Silva tenta viciar as regras do jogo democrático, precondicionando o voto nas próximas eleições legislativas. Para além de procurar que os programas de PS e PSD/CDS sejam próximos ou os mesmos, quer a garantia de que farão governo de maioria absoluta. Esta é a perspetiva de quem considera que as eleições são meramente para legitimação de um arranjo político pré-determinado. Não aceitaremos uma democracia viciada. O resultado de umas eleições é determinado pela vontade popular. O povo é dono da democracia: é assim que tem de ser, é assim que defenderemos.

2.9- A chantagem sobre as maiorias absolutas pretende esconder o compromisso de PS, PSD e CDS com o Tratado Orçamental. Essa é a verdadeira escolha estratégica e já foi feita por estes partidos. É a escolha de quem pretende continuar a governar para os mercados, caricaturando a democracia, instrumentalizando a vontade popular na campanha, para logo depois se esquecer dela quando chega ao governo. O Tratado Orçamental é o compromisso do corte continuado nos serviços públicos, nos salários e nas pensões; é a garantia de novos pacotes de austeridade.

2.10- O Bloco de Esquerda deverá abordar as próximas eleições legislativas com uma posição forte e afirmativa de recuperação dos salários, do emprego e dos direitos.

A desvinculação do Tratado Orçamental, a reestruturação da dívida pública e a nacionalização da banca representam medidas fundamentais de desobediência à Europa da austeridade.

A nacionalização dos bens comuns privatizados e a defesa da água pública, dos serviços públicos de educação, saúde e proteção social, devolvem ao país e aos cidadãos o controlo sobre os setores estratégicos da economia e a recuperação dos direitos sociais.

A reposição dos direitos laborais, da força da contratação coletiva e do combate à precariedade, a par da redução do horário de trabalho para as 35 horas, como forma de partilha do emprego e de valorização do salário.

Uma reforma fiscal que tribute o capital e baixe os impostos sobre quem vive do seu trabalho, o combate à corrupção, ao enriquecimento injustificado e não declarado, e uma legislação laboral que aumente o nível salarial e crie empregos estáveis e com direitos são pilares essenciais para a redistribuição de riqueza.

A defesa de uma política de paz, de democracia e de solidariedade entre povos exige a saída de Portugal da NATO e a construção de um país e de uma Europa que acolha e integre imigrantes e refugiados que fogem da guerra, da fome e das mais diversas formas de violência existentes nos seus países de origem. As tragédias consecutivas e recorrentes de morte de homens, mulheres e crianças no Mediterrâneo exigem que os países europeus ajam imediatamente. E essa ação não pode ser fechar as portas a seres humanos que procuram desesperadamente fugir da guerra e da morte.

3 - Todo o empenho no reforço do Bloco

“Quando a pressão aumenta

Muitos se desencorajam

Mas a coragem dele cresce.”

 - Bertolt Brecht

3.1- A Esquerda Alternativa empenhou-se na construção da Moção E - Bloco Plural. Nesta Moção à IX Convenção do Bloco de Esquerda criamos um espaço de debate e proposta, onde apresentamos ideias fortes e mobilizadoras, que congregaram vontades e motivações de centenas de camaradas. Com este contributo, o Bloco saiu reforçado. Valeu a pena. Temos hoje um movimento mais aberto e democrático e nas eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira conseguimos romper o ciclo de derrotas eleitorais em que estávamos mergulhados.

3.2- A dinâmica criada pela Moção E - Bloco Plural exibiu várias virtudes. Tornou possível o envolvimento de muitas e muitos aderentes, num processo democrático e participado, empenhámo-nos no relançamento da esperança transformadora que projetou o Bloco na sociedade portuguesa. Esse envolvimento permitiu dar passos sólidos no aprofundamento do pensamento sobre a construção do nosso partido/movimento, mas também na reflexão sobre os momentos conturbados que o país enfrenta e as soluções para o ultrapassar. Em coerência com a nossa prática, tudo faremos pela afirmação do inestimável projeto político que o Bloco representa como alternativa política de esquerda à barbárie da austeridade. Para estar à altura das exigências de resposta e reflexão que o momento nos impõe, a Esquerda Alternativa decidiu abrir permanentemente todos os seus espaços de discussão e decisão a todas e todos os aderentes, com igual direito de voto e participação.

3.3- No período após a Convenção, mostramos total abertura para se alcançar um modelo de direção que respondesse a uma nova fase do partido/movimento. Assim foi possível, com um envolvimento alargado das diversas sensibilidades do Bloco. Estamos ativamente empenhados para que ele tenha sucesso. A Esquerda Alternativa está determinada na afirmação do Bloco como um partido/movimento democrático, que se reforça pela sua multiplicidade interna. O Bloco de Esquerda enfrenta agora o desafio de agregar os esforços e as vontades de todas e todos os seus aderentes e fazer da unidade na pluralidade a sua força motriz. A esse repto dizemos presente.

3.4- As próximas eleições legislativas são fundamentais. Lutaremos por alargar a representatividade do Bloco na Assembleia da República, garantindo que estamos à altura do momento importante que vivemos. O contexto político exigirá a concentração máxima no combate à austeridade e na afirmação das alternativas indispensáveis para criar emprego com direitos, renegociar a dívida, repor o controlo público dos setores fundamentais da economia e defender e alargar o Estado Social em nome da universalidade e da sua gratuitidade.